terça-feira, dezembro 29, 2009


DONA
FLOR
E SEUS
DOIS
MARIDOS


EPISÓDIO Nº 6

O corpo fora levado do Largo para o necrotério, mas nem assim ela teve um momento de sossego. De repente tornara-se o centro da vida não só da sua rua mas de todas as artérias adjacentes, e isso num domingo de Carnaval. Até o trazerem de volta, embrulhado num lençol, o traje de baiana numa pequena trouxa colorida, dona Flor não parou de receber pêsames, provas de amizade, gentilezas, numa contínua romaria de vizinhos, conhecidos e amigos. Dona Norma e dona Gisa, essas abandonaram inteiramente os afazeres das suas casas, já um tanto descuidados devido ao Carnaval, almoços e jantares entregues aos cuidados das amas apressadas. Não despregaram as duas de junto de dona Flor, cada qual mais dedicada e consoladora.

Lá fora era o Carnaval com seus mascarados, seus blocos e ranchos, suas fantasias ricas e divertidas. As músicas das multiplicadas orquestras, os Zé-pereiras, os zabumbas, os blocos, os ranchos, afoxés com seus tamboris e atabaques. De quando em vez, dona Norma, não resistia e corria até à janela, debruçava-se, arriscava um olho, trocava facécias com um mascarado conhecido, transmitia a notícia da morte de Vadinho, aplaudia uma fantasia original ou um bloco bonito. Por vezes chamava dona Gisa, se um rancho particularmente animado surgia na esquina. E quando o Afoxé dos Filhos do Mar, já na parte da tarde, deu entrada na rua, com sua figuração inesquecível, acompanhado por grande multidão a sambar, até dona Flor, as lágrimas mal contidas, aproximou-se da janela e espiou o afoxé tão anunciado nos jornais, a maior beleza do Carnaval baiano. Espiou mas sem se mostrar, escondida pelas largas espáduas de dona Gisa. Dona Norma, esquecida do morto e das conveniências, batia palmas entusiásticas.

Assim fora o dia inteiro, desde a hora da notícia. Até dona Nancy, argentina retraída, nova na rua, casada com o dono da fábrica de cerâmica, um arrevesado Bernabó, desceu do seu sobrado rico e de sua soberba, para oferecer condolências e préstimos a dona Flor, revelando-se pessoa simpática e educada e trocando com dona Gisa filosóficas considerações sobre a brevidade da vida e sua segurança.

Não tivera dona Flor, como se vê, tempo para reflectir no seu novo estado e nas transformações de sua existência. Só quando trouxeram Vadinho do necrotério e o deixaram nu no leito do casal, onde tantas e tantas vezes tinham feito amor, então, e somente então, encontrou-se sozinha com a morte do marido e se sentiu viúva. Jamais voltaria ele a derrubá-la na cama de ferro, arrancando-lhe vestido e combinação, e as peças mais íntimas, atirando com o lençol para cima da penteadeira, tomando de cada detalhe de seu corpo, fazendo-a delirar.

Ah! nunca mais, pensou dona Flor, e sentiu um nó na garganta, um tremor nas pernas, compreendeu, então, que tudo terminara. Ficou ali parada, sem palavras e sem lágrimas, despida de qualquer excitação, distante de toda a representação a cercar a morte. Apenas ela e o cadáver nu, ela, e a definitiva ausência de Vadinho. Não ia ter de esperá-lo mais madrugada afora, nem de esconder de suas vistas o dinheiro pago pelas alunas, nem de vigiar as suas relações com as mais bonitas, nem de apanhar dela nos dias de cachaça e mau humor, nem de ouvir os ácidos comentários dos vizinhos. Nem de rolar com ele na cama, abrindo-se toda para o seu desejo, despindo-se da roupa, do lençol e do recato para a festa do amor, a inesquecível festa. O nó na garganta, estrangulando; uma dor no peito, aguda punhalada.

- Flor, não está na hora de vestir ele? A voz de dona Norma ressoava urgente no quarto, vinda da sala – Não tarda chegar visitas…

A viúva abriu a porta; agora estava séria, calada, sem soluços sem gemidos, fria e austera. Sozinha no mundo. Os vizinhos entraram para ajudar. Seu Vivaldo, da funerária Paraíso em Flor, viera pessoalmente entregar o caixão barato – fizera considerável abatimento, era companheiro de Vadinho nas mesas de roleta e bacará onde jogava ataúdes e lápides – e colaborou com eficácia e experiência para fazer do boémio um morto apresentável. Dona Flor a tudo assistiu sem uma palavra, sem uma lágrima, estava sozinha no mundo.

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