quarta-feira, dezembro 30, 2009


DONA FLOR
E SEUS DOIS
MARIDOS


EPISÓDIO Nº 7




O corpo de Vadinho foi depositado no caixão, levado para a sala de visitas onde haviam improvisado um estrado com cadeiras.
Seu Vivaldo trouxera flores, contribuição gratuita da funerária. Dona Gisa arrumou uma saudade roxa entre os dedos cruzados de Vadinho.
Seu Vivaldo considerou para si mesmo o absurdo do gesto: deviam colocar entre os dedos do morto uma ficha de jogo, isso sim. Uma ficha em vez da saudade roxa, e se em lugar da música e dos risos de Carnaval se elevassem por ali perto o ruído das mesas de roleta, a voz roufenha do crupiê, o soar das fichas, as nervosas exclamações dos jogadores, era bem possível ver-se Vadinho levantar-se do caixão, sacudir dos ombros sua morte, como sacudia, num gesto característico, as complicações a perseguirem-no, e encaminhar-se para depositar sua ficha no 17, seu número predilecto. Que poderia ele fazer com uma saudade roxa? Logo estaria murcha e fanada, nenhuma roleta a aceitaria.

Seu Vivaldo não se demorou; carnavalesco obstinado, só abrira a funerária naquele domingo de festa para atender a um amigo como Vadinho. Fosse outro o defunto, e se arranjasse como pudesse, não iria ele Vivaldo, perturbar seu Carnaval.

Muitos perturbaram seus projectos de Carnaval. Foi um desfilar de gente noite adentro, na sentinela do boémio. Alguns vieram por ser Vadinho descendente de ramo pobre e bastardo de uma família importante, os Guimarães.

Um dos seus avoengos fora senador estadual e mandachuva na política. Um tio seu, de apelido Chimbo, ocupara o posto de Delegado Auxiliar durante uns poucos meses. Esse tio, um dos raros Guimarães a reconhecer Vadinho como parente legítimo, foi quem lhe arranjou o emprego na Prefeitura: fiscal de jardins, lugar dos mais modestos, ordenado mísero, não dava para uma noite gorda no Tabaris. Não é necessário ressaltar a completa negligência do jovem funcionário municipal: jamais fiscalizara jardim de nenhuma espécie, só aparecia na repartição para receber os magros caraminguás mensais. Ou para tentar o aval impossível do chefe, para morder os colegas em vinte ou cinquenta mil réis. Os jardins não lhe interessavam, não tinha tempo a perder com plantas e flores, podiam desaparecer todos os jardins da cidade, não lhe fariam falta. Ave nocturna, seus canteiros eram as mesas de jogo, e suas flores, como bem considerava seu Vivaldo as fichas e os baralhos.

Os que vieram por influência do nome dos Guimarães podiam-se contar nos dedos, vagos e apressados parentes. Todos os demais, aquele desfilar sem conta, vinham para despedir-se de Vadinho, para ficar mais uma vez sua face, sorrir para ele numa recordação agradável, dizer-lhe adeus. Porque gostavam dele, desculpavam-lhe as loucuras, valorizavam seu lado bom.

Um dos primeiros a chegar á noite, vestido a rigor, pois iria mais tarde levar as filhas, três moças de truz, ao baile de um grande clube, foi o comendador Celestino, português de nascimento, banqueiro e exportador. Não passara às carreiras, como quem cumpre fastidiosa obrigação. Demorara-se na sala, a conversar, recordando sucessos de Vadinho, após ter abraçado dona Flor e ter-lhe oferecido seus préstimos. De onde
vinha sua estima pelo pequeno funcionário da Prefeitura, pelo boémio dos cabarés de segunda, pelo jogador sempre encalacrado?

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