DONA FLOR
E SEUS DOIS
MARIDOS
Vadinho tinha lábia, que lábia! Certa vez arrancara a assinatura do próspero lusitano numa promissória de alguns contos de réis. Não esqueceu de pagar, pois jamais esquecia as datas de vencimento dos diversos títulos por ele firmados e espalhados em bancos e em mãos de agiotas. Não pôde pagar, o que era diferente. Em geral nunca podia pagar, e não pagava; no entanto a cada dia o número dos títulos aumentava, aumentava o número de avalistas. Como ele o conseguia?
Celestino não voltara a avalizar, não caía duas vezes no mesmo conto. Soltava-lhe, no entanto, pelegas de cem, duzentos e até de quinhentos mil-réis, quando Vadinho lhe aparecia desesperado, sem tostão e com a certeza de ser aquele o seu dia de estourar a banca. Outros, porém, avalizavam duas e três vezes, como se fosse Vadinho o pagador mais correcto, o de melhor cadastro bancário. Todos vencidos por suas manhas, sua conversa dramática e convincente.
O próprio Zé Sampaio, marido de dona Norma, estabelecido com loja de sapatos na cidade baixa, sujeito de conversa rara, casmurrão, pouco dado a visitas, a relações e a intimidades com os vizinhos, o oposto da esposa, ele próprio fora enrolado por Vadinho algumas vezes e, apesar disso, não lhe retirara nem a estima nem o crédito na loja.
Nem mesmo quando descobriu a inacreditável sujeira: Vadinho, certa manhã, comprara fiado no seu estabelecimento vários pares de sapatos, os mais finos e caros, e imediatamente os revendera quase sob as vistas horrorizadas dos empregados de Sampaio, e por preço ínfimo a uma loja rival recém instalada nas imediações. A dinheiro batido – tratava-se de um Vadinho necessitado de urgente numerário para jogar no bicho.
O comerciante levou certamente em conta, ao pesar as responsabilidades do trapaceiro, determinadas atenuantes capazes de explicar e atenuar o deslize.
Um Vadinho alegre e despreocupado, naquela mesma tarde, contou-lhe ter sonhado durante toda a noite com dona Gisa transformada em avestruz, a persegui-lo numa campina sem fim, não sabia exactamente se na intenção de vadiar com ele nos pastos verdes – era um avestruz fêmea e em seus olhos brilhava uma luz velhaca – ou se pretendia devorá-lo a bicadas, pois o perseguia com o enorme bico aberto e ameaçador. Acordava agoniado, sacudia o sonho fora, tentava dormir pensando em assunto mais ameno, e lá voltava a renitente professora a correr atrás dele com o olho libertino e o bico agressivo.
Estivesse dona Gisa em seu quotidiano invólucro carnal e Vadinho não fugiria, enfrentaria a parada, emprenharia o diabo da gringa em cima dos matos com todo o seu assento e conhecimentos de psicologia. Mas com ela vestida de penas, virada num avestruz descomunal, não lhe restava alternativa, além da vergonhosa retirada. Quatro, cinco vezes repetiu-se o pesadelo, e de manhã cansado de tanto correr, banhado em suor, viu-se Vadinho com o palpite mais certeiro e sem tostão. Vasculhou a casa, dona Flor estava lisa, ele levara-lhe na véspera até as moedas. Saiu na esperança de morder uns conhecidos, a praça revelou-se fraquíssima, Vadinho andara abusando ultimamente do seu parco crédito. Foi quando, ao passar ante a Casa Stela, a bem sortida loja de Zé Sampaio, ocorreu-lhe a ideia luminosa e divertida de dedicar-se por breve prazo ao honesto negócio de sapataria, única maneira de obter rapidamente uns trocados.
Não houvesse empreendido operação comercial, desonesta e desastrada na aparência, em verdade subtil e lucrativa, e jamais se perdoaria, pois deu o avestruz – dona Gisa não mentia nem em sonhos – e Vadinho cobrou um dinheiro alto.
Agradecido e digno, procurou em seguida Zé Sampaio na loja e ante os empregados atónitos, pagou-lhe o valor da mercadoria comprada pela manhã, comentou a rir o golpe primoroso e o convidou para um trago comemorativo. Zé Sampaio declinou do convite mas não se zangou com Vadinho, continuou a dar-se com ele e a vender-lhe sapatos com desconto e a prazo. Abatimento de dez por cento no valor da compra, crédito limitado a um par de sapatos em cada compra e só após ter sido liquidada a anterior.
E SEUS DOIS
MARIDOS
EPISÓDIO Nº 8
Vadinho tinha lábia, que lábia! Certa vez arrancara a assinatura do próspero lusitano numa promissória de alguns contos de réis. Não esqueceu de pagar, pois jamais esquecia as datas de vencimento dos diversos títulos por ele firmados e espalhados em bancos e em mãos de agiotas. Não pôde pagar, o que era diferente. Em geral nunca podia pagar, e não pagava; no entanto a cada dia o número dos títulos aumentava, aumentava o número de avalistas. Como ele o conseguia?
Celestino não voltara a avalizar, não caía duas vezes no mesmo conto. Soltava-lhe, no entanto, pelegas de cem, duzentos e até de quinhentos mil-réis, quando Vadinho lhe aparecia desesperado, sem tostão e com a certeza de ser aquele o seu dia de estourar a banca. Outros, porém, avalizavam duas e três vezes, como se fosse Vadinho o pagador mais correcto, o de melhor cadastro bancário. Todos vencidos por suas manhas, sua conversa dramática e convincente.
O próprio Zé Sampaio, marido de dona Norma, estabelecido com loja de sapatos na cidade baixa, sujeito de conversa rara, casmurrão, pouco dado a visitas, a relações e a intimidades com os vizinhos, o oposto da esposa, ele próprio fora enrolado por Vadinho algumas vezes e, apesar disso, não lhe retirara nem a estima nem o crédito na loja.
Nem mesmo quando descobriu a inacreditável sujeira: Vadinho, certa manhã, comprara fiado no seu estabelecimento vários pares de sapatos, os mais finos e caros, e imediatamente os revendera quase sob as vistas horrorizadas dos empregados de Sampaio, e por preço ínfimo a uma loja rival recém instalada nas imediações. A dinheiro batido – tratava-se de um Vadinho necessitado de urgente numerário para jogar no bicho.
O comerciante levou certamente em conta, ao pesar as responsabilidades do trapaceiro, determinadas atenuantes capazes de explicar e atenuar o deslize.
Um Vadinho alegre e despreocupado, naquela mesma tarde, contou-lhe ter sonhado durante toda a noite com dona Gisa transformada em avestruz, a persegui-lo numa campina sem fim, não sabia exactamente se na intenção de vadiar com ele nos pastos verdes – era um avestruz fêmea e em seus olhos brilhava uma luz velhaca – ou se pretendia devorá-lo a bicadas, pois o perseguia com o enorme bico aberto e ameaçador. Acordava agoniado, sacudia o sonho fora, tentava dormir pensando em assunto mais ameno, e lá voltava a renitente professora a correr atrás dele com o olho libertino e o bico agressivo.
Estivesse dona Gisa em seu quotidiano invólucro carnal e Vadinho não fugiria, enfrentaria a parada, emprenharia o diabo da gringa em cima dos matos com todo o seu assento e conhecimentos de psicologia. Mas com ela vestida de penas, virada num avestruz descomunal, não lhe restava alternativa, além da vergonhosa retirada. Quatro, cinco vezes repetiu-se o pesadelo, e de manhã cansado de tanto correr, banhado em suor, viu-se Vadinho com o palpite mais certeiro e sem tostão. Vasculhou a casa, dona Flor estava lisa, ele levara-lhe na véspera até as moedas. Saiu na esperança de morder uns conhecidos, a praça revelou-se fraquíssima, Vadinho andara abusando ultimamente do seu parco crédito. Foi quando, ao passar ante a Casa Stela, a bem sortida loja de Zé Sampaio, ocorreu-lhe a ideia luminosa e divertida de dedicar-se por breve prazo ao honesto negócio de sapataria, única maneira de obter rapidamente uns trocados.
Não houvesse empreendido operação comercial, desonesta e desastrada na aparência, em verdade subtil e lucrativa, e jamais se perdoaria, pois deu o avestruz – dona Gisa não mentia nem em sonhos – e Vadinho cobrou um dinheiro alto.
Agradecido e digno, procurou em seguida Zé Sampaio na loja e ante os empregados atónitos, pagou-lhe o valor da mercadoria comprada pela manhã, comentou a rir o golpe primoroso e o convidou para um trago comemorativo. Zé Sampaio declinou do convite mas não se zangou com Vadinho, continuou a dar-se com ele e a vender-lhe sapatos com desconto e a prazo. Abatimento de dez por cento no valor da compra, crédito limitado a um par de sapatos em cada compra e só após ter sido liquidada a anterior.
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