DONA FLOR
E SEUS DOIS
MARIDOS
EPISÓDIO Nº 14
Magro e bigodudo, vivia o astucioso Cravo às voltas com peças com peças de automóveis, chapas de ferro, máquinas avariadas a entortar e a remendar toda aquela tralha, atribuindo valor artístico ao resultado, sob os aplausos dos dois poetas e de outros entendidos, unânimes em rotularem aquele ferro velho de escultura moderna e em apontarem o biltre como revelação de artista notável e revolucionário.
Eis outra discussão que não cabe nestas páginas, o do valor real do mestre Cravo, não vamos aqui analisar-lhe a obra. Adiantemos apenas, como matéria de informação, o facto de ter a crítica posteriormente consagrado o seu trabalho, objecto, inclusive, de estudos de foliculários estrangeiros. Naquele tempo, no entanto, não era ele ainda artista consagrado, apenas começava, e se já possuía certa notoriedade, devia-se sobretudo à sua discutível actuação nas sacristias e altares.
O próprio Vadinho, segundo consta, participara, em ocasião de extrema penúria, de sigilosa peregrinação nocturna à vetusta igreja do Recôncavo, romaria organizada pelo herético Mário Cravo. O saque da igreja deu o que falar, pois uma das peças surripiadas, um São Benedito, era atribuída a Frei Agostinho da Piedade e os frades botaram a boca no mundo. Hoje a imagem valiosa encontra-se num museu do Sul, a acreditar-se nos maldizentes subliteratos, por obra e graça dois então magros sócios de musa lírica e devoto comércio.
Naquela manhã, antes do almoço, conversavam na redacção, falando de santos e de quadros, quando Carlos Eduardo tirou do bolso cópia da elegia e a deu a ler ao poeta Odorico.
Lastimando não poder publicá-la – “não por causa do anonimato, meteríamos um pseudónimo qualquer…” mas por causa dos palavrões – Tavares repetiu: “uma pena…” e releu em voz alta mais um verso:
“Estão de luto os jogadores e as negras da Bahia”
Perguntou ao amigo:
- Descobriste logo o autor, não?
- Tu pensas que seja dele? Pareceu-me, porém…
- Está na cara…Ouve: “Um momento de silêncio em todas as roletas, bandeiras a meio pau nas bandeiras dos castelos, bundas em desespero a soluçar.”
- É capaz…
- É capaz, não. É com certeza – riu: - Velho sem vergonha…
Aquela certeza não a possuíam os meios literários. A elegia foi atribuída a diversos poetas, vates conhecidos ou jovens estreantes. Deram-na como de Hélio Simões, Susígenes Costa, de Carvalho Filho, de Alves Ribeiro, de Eurico Alves. Muitos indicaram Robato como o mais provável autor. Não a declamava ele, entusiasmado, rolando a voz rica de modulações?
Não podiam entender como Roberto recitaria versos de outro, gesto pouco habitual naqueles meios, esqueciam-se da natureza generosa do sonetista, de sua capacidade de admirar e aplaudir obra alheia.
Pode-se inclusive marcar o início do sucesso da elegia e da polémica por ela suscitada a partir da alegre noite no castelo de Carla, a “gorda Carla”, competente profissional aportada de Itália, cuja cultura extra limitava do metier, lida em D’Anunzzio, doida por umas rimas.
“Romântica como uma vaca” assim a classificava o bigodudo Cravo, com quem ela andara metida uns tempos. Carla não podia passar sem uma paixão dramática e navegava de boémio em boémio, suspirando e gemendo, dilacerada de ciúmes, com seus tremendos olhos azuis, os seios de prima-dona, as coxas espantosas. Vadinho, igualmente, lhe merecera as boas graças e uns trocados, se bem ela preferisse os poetas, versejando ela própria na “doce língua de Dante com muito estro e inspiração”, como adulava Robato.
Todas as quintas feiras à noite, Carla reunia uma espécie de salão literário em seus amplos aposentos. Compareciam poetas e artistas, boémios, algumas figuras gradas, como o desembargador Airosa, e as raparigas do castelo prontas a aplaudir os versos e a rir das anedotas. Serviam bebidas e docinhos.
Carla presidia à soiré, reclinada num divã repleto de coxins e almofadas, vestindo túnica grega ou pedrarias, ateniense de figurino ou egípcia de Hollywood, recém saída de uma ópera.
Os poetas declamavam, trocavam frases de espírito, epigramas, cruzavam-se trocadilhos, o desembargador sentenciava um axioma preparado durante a semana, num duro labor. O momento culminante da tertúlia acontecia quando a dona da casa, a grande Carla, alçava-se por entre os travesseiros, toda aquela tonelada de carne branca recoberta de pedraria falsa, e, num fio de voz, extravagante em mulher tão monumental, declamava, em açucarados versos italianos, seu amor pelo último eleito.
E SEUS DOIS
MARIDOS
EPISÓDIO Nº 14
Magro e bigodudo, vivia o astucioso Cravo às voltas com peças com peças de automóveis, chapas de ferro, máquinas avariadas a entortar e a remendar toda aquela tralha, atribuindo valor artístico ao resultado, sob os aplausos dos dois poetas e de outros entendidos, unânimes em rotularem aquele ferro velho de escultura moderna e em apontarem o biltre como revelação de artista notável e revolucionário.
Eis outra discussão que não cabe nestas páginas, o do valor real do mestre Cravo, não vamos aqui analisar-lhe a obra. Adiantemos apenas, como matéria de informação, o facto de ter a crítica posteriormente consagrado o seu trabalho, objecto, inclusive, de estudos de foliculários estrangeiros. Naquele tempo, no entanto, não era ele ainda artista consagrado, apenas começava, e se já possuía certa notoriedade, devia-se sobretudo à sua discutível actuação nas sacristias e altares.
O próprio Vadinho, segundo consta, participara, em ocasião de extrema penúria, de sigilosa peregrinação nocturna à vetusta igreja do Recôncavo, romaria organizada pelo herético Mário Cravo. O saque da igreja deu o que falar, pois uma das peças surripiadas, um São Benedito, era atribuída a Frei Agostinho da Piedade e os frades botaram a boca no mundo. Hoje a imagem valiosa encontra-se num museu do Sul, a acreditar-se nos maldizentes subliteratos, por obra e graça dois então magros sócios de musa lírica e devoto comércio.
Naquela manhã, antes do almoço, conversavam na redacção, falando de santos e de quadros, quando Carlos Eduardo tirou do bolso cópia da elegia e a deu a ler ao poeta Odorico.
Lastimando não poder publicá-la – “não por causa do anonimato, meteríamos um pseudónimo qualquer…” mas por causa dos palavrões – Tavares repetiu: “uma pena…” e releu em voz alta mais um verso:
“Estão de luto os jogadores e as negras da Bahia”
Perguntou ao amigo:
- Descobriste logo o autor, não?
- Tu pensas que seja dele? Pareceu-me, porém…
- Está na cara…Ouve: “Um momento de silêncio em todas as roletas, bandeiras a meio pau nas bandeiras dos castelos, bundas em desespero a soluçar.”
- É capaz…
- É capaz, não. É com certeza – riu: - Velho sem vergonha…
Aquela certeza não a possuíam os meios literários. A elegia foi atribuída a diversos poetas, vates conhecidos ou jovens estreantes. Deram-na como de Hélio Simões, Susígenes Costa, de Carvalho Filho, de Alves Ribeiro, de Eurico Alves. Muitos indicaram Robato como o mais provável autor. Não a declamava ele, entusiasmado, rolando a voz rica de modulações?
Não podiam entender como Roberto recitaria versos de outro, gesto pouco habitual naqueles meios, esqueciam-se da natureza generosa do sonetista, de sua capacidade de admirar e aplaudir obra alheia.
Pode-se inclusive marcar o início do sucesso da elegia e da polémica por ela suscitada a partir da alegre noite no castelo de Carla, a “gorda Carla”, competente profissional aportada de Itália, cuja cultura extra limitava do metier, lida em D’Anunzzio, doida por umas rimas.
“Romântica como uma vaca” assim a classificava o bigodudo Cravo, com quem ela andara metida uns tempos. Carla não podia passar sem uma paixão dramática e navegava de boémio em boémio, suspirando e gemendo, dilacerada de ciúmes, com seus tremendos olhos azuis, os seios de prima-dona, as coxas espantosas. Vadinho, igualmente, lhe merecera as boas graças e uns trocados, se bem ela preferisse os poetas, versejando ela própria na “doce língua de Dante com muito estro e inspiração”, como adulava Robato.
Todas as quintas feiras à noite, Carla reunia uma espécie de salão literário em seus amplos aposentos. Compareciam poetas e artistas, boémios, algumas figuras gradas, como o desembargador Airosa, e as raparigas do castelo prontas a aplaudir os versos e a rir das anedotas. Serviam bebidas e docinhos.
Carla presidia à soiré, reclinada num divã repleto de coxins e almofadas, vestindo túnica grega ou pedrarias, ateniense de figurino ou egípcia de Hollywood, recém saída de uma ópera.
Os poetas declamavam, trocavam frases de espírito, epigramas, cruzavam-se trocadilhos, o desembargador sentenciava um axioma preparado durante a semana, num duro labor. O momento culminante da tertúlia acontecia quando a dona da casa, a grande Carla, alçava-se por entre os travesseiros, toda aquela tonelada de carne branca recoberta de pedraria falsa, e, num fio de voz, extravagante em mulher tão monumental, declamava, em açucarados versos italianos, seu amor pelo último eleito.
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