sábado, janeiro 02, 2010


DONA
FLOR

E SEUS
DOIS

MARIDOS

EPISÓDIO Nº 9



Prova ainda mais impressionante do prestígio de Vadinho foi o Zé Sampaio ter comparecido à sentinela. Por breves minutos, é verdade, mas era aquele o primeiro velório do comerciante nos últimos dez anos. Tinha horror a todo e qualquer compromisso social, sobretudo a cerimónias fúnebres, velórios, cemitérios, missas do sétimo dia, o que levava dona Norma a gritar-lhe quando ele se recusava a acompanhá-la a um dos seus vários enterros semanais.

- Quando você morrer, Sampaio, não vai ter gente nem para carregar o caixão… vai ser uma vergonha.

Zé Sampaio punha-lhe um olhar torvo, não respondia, o dedo grande da mão direita entre os dentes, num gesto seu, habitual, de resignação ante o perpétuo alvoroço da esposa.

Compareceram os importantes, como Celestino e Zé Sampaio, como o parente Chimbo, o arquitecto Chaves, o dr. Barreiros, proeminente figura da Justiça, e o poeta Godofredo Filho. Chegaram incorporados os colegas da repartição, a todos eles Vadinho devia pequenas quantias. A comandá-los, oratório e solene, veio o ilustre Director dos Parques e Jardins, trajando terno preto. Vieram os vizinhos, os ricos e os pobres, os remediados também. E vieram todos quantos na Bahia frequentavam os casinos de jogo, os cabarés, as bancas do bicho, as alegres casas de mulheres: Mirandão, Curvelo, Pé de Jegue, Valdomiro Lins e seu jovem irmão Wilson, Anacreon, Cardoso Peroba, Arigof, Pierre Verger com seu perfil de pássaro e seus mistérios de Ifá. Alguns, como o doutor Giovanni Guimarães, médico e jornalista, pertenciam aos dois grupos, familiares dos grandes e dos pequenos, dos respeitáveis e dos irresponsáveis.

Os importantes recordaram Vadinho entre risos, suas histórias cheias de picardia e de malícia, seus golpes divertidos, suas trampolinagens atrevidas, suas atrapalhações e confusões, e seu bom coração, sua gentileza, sua graça inconsequente. Também os vizinhos assim o relembravam: boémio sem horários e sem limites. Uns e outros ampliavam a realidade, inventavam-lhe detalhes, atribuíam-lhe casos e aventuras, a lenda de Vadinho começava a nascer ali, junto do seu corpo, quase mesmo na hora da sua morte. O citado doutor Giovanni Guimarães imaginava pedaços inteiros de histórias, floreava os acontecidos, era chegado a uma mentirazinha bem apoiada em datas e locais precisos:

- Um dia, há quatro anos passados, no mês de Março encontrei Vadinho na casa de Três Duques, jogando no 17. Estava vestido com uma capa de borracha, por baixo não tinha roupa nenhuma, nuzinho. Botara tudo no prego, empenhara calça e paletó, camisa e cueca, para poder jogar.

Ramiro, aquele espanhol canguinha de Setenta e Sete, só queria aceitar a calça e o paletó, que diabo iria fazer com uma camisa de colarinho puído, uma velha cueca, uma gravata vagabunda? Mas Vadinho lhe impingiu até o par de meias, guardou apenas os sapatos. E tinha tanto mel na língua que conseguiu que Ramiro, aquela fera que vocês conhecem, lhe emprestasse uma capa de borracha quase nova pois não ia sair nu, rua afora, em direcção à casa de Três Duques…

- E ganhou? – queria saber o jovem Arthur, filho de seu Sampaio e de dona Norma, ginasiano e admirador de Vadinho, a ouvir boquiaberto o relato do jornalista.

Doutor Giovanni olhou o moço, fez uma pausa sorriu com o rosto todo:

- Qual quê… pela madrugada perdeu a capa do espanhol no 17 e foi trazido para casa nas folhas de um jornal… - o sorriso transformava-se num riso sonoro, contagioso, ninguém igual a Dr. Giovanni para animar uma sentinela.

E como naquele momento entrasse na sala o inumerável Robato, o jornalista acrescentou a prova final, as palavras ainda molhadas de riso:

- Está aí quem não me deixa mentir…Você ainda se lembra, Robato, daquela noite em que Vadinho foi nu para casa, enrolado no jornal?

Robato não era homem de vacilar: circundou o olhar em torno examinando o grupo acomodado num canto da sala de jantar; temeroso de ouvidos femininos e indiscretos, não fossem chegar à desolada viúva tais recordações; mas vacilar não vacilou, não era de recusar desafios, tinha o repente fácil, pegou a deixa no ar:

- Nu, enrolado num jornal? Ora, se me recordo… - pigarreou para aclarar a voz barroca e desatar a imaginação. – Pois se a gazeta era minha…Foi no castelo de Eunice Um Dente Só; além de nós dois e de Vadinho, me lembro de Carlinhos Mascarenhas, de Jener e de Viriato Tanajura…A gente tinha bebido a noite inteira, uma pifa sem medida…

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