DONA FLOR
E SEUS DOIS
MARIDOS
EPISÓDIO Nº 10
Era esse Robato um noctívago da força de Vadinho, de outra estirpe, porém. Não o tentava o jogo nem fugia ao trabalho; ao contrário, homem de sete instrumentos, tinha fama de activo e competente. Fabricava dentaduras, consertava rádios e vitrolas, tirava retratos para carteiras, bulia em tudo quanto era máquina, cheio de hábil curiosidade. Sua roleta era a poesia, bem metrificada e bem rimada (rimas ricas), seu casino os bares e cabarés onde atravessava as madrugadas na amena companhia de outros tenazes literatos e de raparigas simpatizantes das musas e de seus cultores, a declamar odes, cantos libertários, poemas líricos e lúbricos, sonetos de amor. Tudo de sua autoria. Ele mesmo proclamara-se “rei mundial do soneto”, batera todos os recordes conhecidos, autor até àquela data de vinte mil oitocentos e sessenta e cinco sonetos, entre decassílabos e alexandrinos, de arte-maior e de arte-menor, e anacíclicos. Um princípio de calva ameaçava-lhe a cabeleira morena de vate mas não lhe diminuía a simpatia radiosa.
Tomou da palavra e novamente Vadinho atravessava a sala envolto em jornais, não mais iria esquecê-lo o jovem Arthur, dele se recordaria para sempre: embrulhado nas folhas de A Tarde, Vadinho, herói de um mundo proibido e fascinante.
Sucediam-se as histórias enquanto dona Norma, dona Gisa, a casadoura Regina, outras moças e senhoras, serviam cafezinho com bolos, cálices de cachaça e de licor de frutas. A vizinhança providenciara para que nada faltasse ao velório.
Os importantes, sentados na sala de jantar, no corredor, na porta da rua, relembravam Vadinho entre anedotas e risos. Os outros, os parceiros do jogo e da malandragem, recordavam-no em silêncio, sérios e comovidos, demoravam na sala de visitas, de pé, ao lado do corpo. Ao entrar, paravam ante dona Flor, apertavam-lhe a mão, encabulados como se fossem responsáveis pelos malefícios de Vadinho. Muitos deles não a conheciam sequer, nunca a tinham visto, mas, de tanto ouvirem falar dela, sabiam como por vezes Vadinho tomava-lhe até o dinheiro das despesas para jogá-lo no Palace, no Tabaris, no Abaixadinho, no antro de Zé Meningite, no de Abílio Moqueca, nas múltiplas roletas ilegais da cidade, inclusivé na mal afamada casa de tavolagem do negro Paranaguá Ventura, onde por princípio só o banqueiro devia ganhar.
Figura torva e amedrontadora essa do negro Paranaguá Ventura com suas incontáveis entradas na polícia, um rol de acusações jamais completamente provadas, sua fama de ladrão, estuprador e assassino. Por crime de morte respondera a júri e fora absolvido mais por falta de coragem dos jurados do que por falta de provas. Diziam-no autor de outros dois assassinatos sem falar na mulher esfaqueada na Ladeira de São Miguel, em pleno meio-dia, pois essa escapara por um triz. O covil de Paranaguá, frequentavam-no apenas capadócios profissionais de baralhos marcados, gatunos, batedores de carteiras, vigaristas, gente sem nada mais a perder. Pois bem: até lá chegava o Vadinho com seu magro dinheiro e seu riso alegre, e talvez fosse ele um dos poucos eleitos a poder gabar-se de haver ganho alguma vez nos dados viciados de Paranaguá.
Segundo constava, de quando em quando, o negro permitia a um parceiro de sua afeição acertar uma bolada.
Vieram também as alunas de dona Flor, quase todas. Alunas e ex-alunas, unânimes no desejo de consolar a estimada e competente professora, tão boazinha, coitada! De três em três meses sucediam-se as turmas nos cursos de culinária geral (pela manhã) e de culinária baiana (pela tarde), formavam-se em forno e fogão. Com diploma impresso e quadro de formatura exposto em loja da Avenida Sete, desde uma turma antiga, à qual pertencera dona Oscarlinda, enfermeira de categoria, funcionária do Hospital Português esbelta e esporreteada, doida por um enredo. Exigira diploma e quadro, movimentara as colegas, fizera uma agitação dos demónios, recolhera contribuições, arranjara desenhistas de raça, pintara o sete, a enxerida. Assim pressionada dona Flor concordou, inclusivé com o desenhista, um conhecido de dona Oscarlinda, não sem proclamar no entanto a competência de seu irmão Heitor – que desenhara o cartaz com o nome da Escola, ainda na Ladeira do Alvo – infelizmente residindo agora em Nazareth das Farinhas. De qualquer maneira, sentira-se vaidosa ao ler, no diploma e no quadro de formatura, em grossas letras tipográficas:
Escola de Culinária Sabor e Arte
E, logo abaixo, em caracteres floreados:
Directora – Florípedes Paiva Guimarães
Era esse Robato um noctívago da força de Vadinho, de outra estirpe, porém. Não o tentava o jogo nem fugia ao trabalho; ao contrário, homem de sete instrumentos, tinha fama de activo e competente. Fabricava dentaduras, consertava rádios e vitrolas, tirava retratos para carteiras, bulia em tudo quanto era máquina, cheio de hábil curiosidade. Sua roleta era a poesia, bem metrificada e bem rimada (rimas ricas), seu casino os bares e cabarés onde atravessava as madrugadas na amena companhia de outros tenazes literatos e de raparigas simpatizantes das musas e de seus cultores, a declamar odes, cantos libertários, poemas líricos e lúbricos, sonetos de amor. Tudo de sua autoria. Ele mesmo proclamara-se “rei mundial do soneto”, batera todos os recordes conhecidos, autor até àquela data de vinte mil oitocentos e sessenta e cinco sonetos, entre decassílabos e alexandrinos, de arte-maior e de arte-menor, e anacíclicos. Um princípio de calva ameaçava-lhe a cabeleira morena de vate mas não lhe diminuía a simpatia radiosa.
Tomou da palavra e novamente Vadinho atravessava a sala envolto em jornais, não mais iria esquecê-lo o jovem Arthur, dele se recordaria para sempre: embrulhado nas folhas de A Tarde, Vadinho, herói de um mundo proibido e fascinante.
Sucediam-se as histórias enquanto dona Norma, dona Gisa, a casadoura Regina, outras moças e senhoras, serviam cafezinho com bolos, cálices de cachaça e de licor de frutas. A vizinhança providenciara para que nada faltasse ao velório.
Os importantes, sentados na sala de jantar, no corredor, na porta da rua, relembravam Vadinho entre anedotas e risos. Os outros, os parceiros do jogo e da malandragem, recordavam-no em silêncio, sérios e comovidos, demoravam na sala de visitas, de pé, ao lado do corpo. Ao entrar, paravam ante dona Flor, apertavam-lhe a mão, encabulados como se fossem responsáveis pelos malefícios de Vadinho. Muitos deles não a conheciam sequer, nunca a tinham visto, mas, de tanto ouvirem falar dela, sabiam como por vezes Vadinho tomava-lhe até o dinheiro das despesas para jogá-lo no Palace, no Tabaris, no Abaixadinho, no antro de Zé Meningite, no de Abílio Moqueca, nas múltiplas roletas ilegais da cidade, inclusivé na mal afamada casa de tavolagem do negro Paranaguá Ventura, onde por princípio só o banqueiro devia ganhar.
Figura torva e amedrontadora essa do negro Paranaguá Ventura com suas incontáveis entradas na polícia, um rol de acusações jamais completamente provadas, sua fama de ladrão, estuprador e assassino. Por crime de morte respondera a júri e fora absolvido mais por falta de coragem dos jurados do que por falta de provas. Diziam-no autor de outros dois assassinatos sem falar na mulher esfaqueada na Ladeira de São Miguel, em pleno meio-dia, pois essa escapara por um triz. O covil de Paranaguá, frequentavam-no apenas capadócios profissionais de baralhos marcados, gatunos, batedores de carteiras, vigaristas, gente sem nada mais a perder. Pois bem: até lá chegava o Vadinho com seu magro dinheiro e seu riso alegre, e talvez fosse ele um dos poucos eleitos a poder gabar-se de haver ganho alguma vez nos dados viciados de Paranaguá.
Segundo constava, de quando em quando, o negro permitia a um parceiro de sua afeição acertar uma bolada.
Vieram também as alunas de dona Flor, quase todas. Alunas e ex-alunas, unânimes no desejo de consolar a estimada e competente professora, tão boazinha, coitada! De três em três meses sucediam-se as turmas nos cursos de culinária geral (pela manhã) e de culinária baiana (pela tarde), formavam-se em forno e fogão. Com diploma impresso e quadro de formatura exposto em loja da Avenida Sete, desde uma turma antiga, à qual pertencera dona Oscarlinda, enfermeira de categoria, funcionária do Hospital Português esbelta e esporreteada, doida por um enredo. Exigira diploma e quadro, movimentara as colegas, fizera uma agitação dos demónios, recolhera contribuições, arranjara desenhistas de raça, pintara o sete, a enxerida. Assim pressionada dona Flor concordou, inclusivé com o desenhista, um conhecido de dona Oscarlinda, não sem proclamar no entanto a competência de seu irmão Heitor – que desenhara o cartaz com o nome da Escola, ainda na Ladeira do Alvo – infelizmente residindo agora em Nazareth das Farinhas. De qualquer maneira, sentira-se vaidosa ao ler, no diploma e no quadro de formatura, em grossas letras tipográficas:
Escola de Culinária Sabor e Arte
E, logo abaixo, em caracteres floreados:
Directora – Florípedes Paiva Guimarães
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