terça-feira, janeiro 05, 2010


DONA FLOR
E SEUS DOIS
MARIDOS

EPISÓDIO Nº 11


Vadinho, nos raros dias em que, acordando mais cedo, permanecia em casa, rondava as alunas, envolvendo-se nas aulas de culinária, perturbando-as.

Reunidas em torno da professora, álacres e graciosas, elas anotavam as receitas, as quantidades exactas de camarão, de azeite-de-dedém, de coco ralado, uma pitada de pimenta do reino, aprendiam como tratar o peixe, como preparar a carne, como bater os ovos. Vadinho interrompia com uma piada sobre os ovos, de duplo sentido, riam-se as descaradas.

Umas descaradas. quase todas elas. Muita amizade e adulação com dona Flor mas de olhos interessados no patife. Lá estava ele com seu ar trêfego e altivo, escornado numa cadeira ou estendido num degrau da porta da cozinha, a la godaça, a medi-las de cimo a baixo, demorando-se atrevido nas pernas, nos joelhos, no caminho das coxas, na altura dos seios. Elas baixavam os olhos, o não-sei-que-diga não baixava os dele.

Dona Flor preparava os pratos salgados e os bolos, tortas e doces, nas aulas práticas. Vadinho emitia conceitos, arrotava chalaças, comia os quitutes, circulando em torno delas, puxando conversa com as mais bonitas, arriscando a mão salafrária se alguma mais árdega se aproximava.

Dona Flor ficava nervosa, agoniada, a ponto de errar as medidas de manteiga derretida no manuê difícil, rogando a Deus fosse Vadinho para a rua, para a malandragem, para a desgraça do jogo, mas deixasse as alunas em paz.

Agora, no velório, cercavam dona Flor e a confortavam, mas uma delas, a pequena Ieda, com sua cara de gata arisca, mal podia conter as lágrimas e não desviava os olhos da face do morto. Dona Flor percebeu logo o exagero de sentimento, sentiu um baque no peito. Teria se passado alguma coisa entre eles? Nunca notara nada de suspeito, mas quem podia garantir não se encontrassem os dois fora da escola, fossem terminar num castelo qualquer? Vadinho, desde o caso com a sirigaita da Noémia, aparentemente deixara de pastorear as alunas. Mas era homem de muita manha, bem podia esperar a desbriada na esquina, botar-lhe conversa, e que mulher resistia à lábia de Vadinho? Dona Flor acompanhava o olhar de Ieda, descobria o beicinho trémulo da moça. Não lhe restava dúvidas, ah! Vadinho mais sem jeito…

De todos os desgostos que lhe dera o marido, nenhum comparável ao caso com a donzela Noémia, putinha de família respeitável, e noiva, um horror!

Mas dona Flor não queria recordar aquela tristeza antiga na noite da sentinela, quando, pela derradeira vez, fitava a face de Vadinho. Tudo aquilo passara, estava distante, a fulana casara, fora embora com o noivo, um zinho com fumaças de jornalista, talento precoce pois tão jovem e já tão corno, de nome Alberto. Ao demais, com o casamento, a pedante enfeara de vez, virara um bucho sem medida.

Quando, naquela ocasião, tudo terminara bem quase por milagre, Vadinho lhe dissera no calor do leito e da reconciliação: “Mulher permanente para mim só mesmo tu sou capaz de suportar. O resto é tudo Xixica para passar o tempo.”Ali no velório, cercada de tanta gente e de tanta afeição, dona Flor não deseja relembrar aquela esquecida história, tão pouco vigiar gestos e olhares da pequena Ieda com seu choro mal contido, seu segredo debulhado em lágrimas. Com Vadinho morto nada mais importava, para que esclarecer, tirar a limpo, acusar e lastimar-se? Ele morrera, tinha pago tudo e até com juros pois tão jovem se finara. Dona flor sentiu-se em paz com o marido, não tinha contas a acertar com ele.

Curvou a cabeça, deixou de controlar os movimentos da moça. Via apenas, ao baixar os olhos, Vadinho tocando-lhes o corpo com a mão, no leito de ferro, dizendo-lhe ao ouvido: “Tudo xixica para passar o tempo, permanente só tu, Flor, minha flor de manjericão, outra nenhuma. Que diabo era Xixica? – quis de repente saber dona Flor. Uma pena, nunca lhe havia perguntado, mas
coisa boa não seria. Sorriu, permanente só ela, Flor, flor de Vadinho em sua mão desfolhada.

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