terça-feira, janeiro 12, 2010


DONA
FLOR
E SEUS
DOIS
MARIDOS


EPISÓDIO Nº 17




Ora, na missa do sétimo dia, oficiada por dom Clemente Nigra na Igreja de Santa Tereza, envolta a nave esplêndida numa luz matinal azulada e transparente, chegada do mar defronte, como se o templo fora um navio prestes a largar – a simpatia e a solidariedade expressas em comentários sussurrados, dirigiam-se a dona Flor, ajoelhada na primeira fila perante o altar, toda em negro, mantilha de rendas emprestada por dona Norma escondendo-lhe os cabelos e as lágrimas, um terço entre os dedos. Mas os cochichos não a lastimavam por haver perdido o marido e, sim, por tê-lo possuído. Dobrada no genuflexório, nada ouvia dona Flor, como se mais ninguém estivesse no santuário, apenas ela, o padre e a ausência de Vadinho.

Um rumor de beatas, de velhas ratas de sacristia, de rançosas inimigas da graça e do riso, se elevava junto com o incenso, num murmúrio ácido.

- Não valia nem um vintém de reza, o renegado.

- Se ela não fosse uma santa, em vez de missa dava era uma festa. Com dança e tudo…

- Para ela foi uma carta de alforria…

- No altar, celebrando pela alma de Vadinho, dom Clemente, macerado de vigílias sobre livros antigos, sentia na atmosfera mágica da manhã apenas despertara certas perturbações, auras maléficas como se um demónio qualquer, Lucífer ou Exu, mais provavelmente Exu, andasse solto pela nave. Por que não deixavam Vadinho em paz, não lhe permitiam descansar? Bem o conhecera dom Clemente: Vadinho gostava de vir conversar no pátio do convento, sentava-se sobre a muralha, contando histórias nem sempre as mais condizentes com aquelas venerandas paredes, mas ouvidas com atenção pelo frade, curioso e solidário com toda a experiência humana.

Havia no corredor, entre a nave e a sacristia, uma espécie de altar, e nele um anjo talhado em madeira, escultura anónima e popular talvez do século XVII, e era como se o artista houvesse tomado Vadinho de modelo; a mesma fisionomia inocente, idêntica ternura. Estava ele ajoelhado ante a imagem, bem mais recente e barroca, de uma Santa Clara, e para ela estendia as mãos. Certa ocasião dom Clemente levara Vadinho a ver o altar e o anjo, queria saber se o boémio dar se-ia conta da parecença. Vadinho pôs-se a rir apenas enxergou as imagens.

Por que ris assim? – perguntou-lhe o frade.

- Que Deus me perdoe, padre…Mas não parece que o anjo está fretando a santa?

- Está o quê? Que termos são esses Vadinho?

- Desculpe dom Clemente, mas é que esse anjo tem uma cara manjada de gigolô…Nem parece anjo…Espie o olho dele…olho de frete…

Voltando-se no altar para dar a bênção, as mãos levantadas, o sacerdote viu as beatas a resmungarem: ali estava a perturbação, o maligno, ah!, bocas de lama e maldade, ah!, fedidas e azedas donzelices, mesquinhas e cúpidas solteironas, e a comandá-las dona Rozilda, “Deus que as perdoe, pois infinita é a sua bondade!”

- A pobrezinha sofreu na mão dele. Comeu o pão que o diabo amassou…

- Porque quis. Não por falta de conselho meu…Não fosse tão assanhada, tivesse me ouvido…Fiz o que estava em minhas mãos…

Perorava assim dona Rozilda, mãe de dona Flor, nascida para madrasta, tentando com denodo cumprir sua vocação.

- Mas ela estava com o bicho-carpinteiro, estava de pito aceso, Deus me livre, não quis ouvir nada, se revoltou…E encontrou quem apoiasse, casa para se esconder…

Disse e olhou para o lado onde rezava dona Lita, sua irmã, ajoelhada.

Completou:

- Mandar dizer missa por aquele traste é jogar dinheiro fora, é só para encher o bandulho do frade…

Dom Clemente tomou o turíbulo e lançou incenso contra o fétido hálito do demónio a respirar pela boca das beatas. Desceu do altar, parou ante Flor, colocou-lhe a mão afectuosa sobre o ombro, disse para ser ouvido pelo coro sinistro das velhas peçonhentas:

- Mesmo os anjos transviados têm seu assento ao lado de Deus, em sua glória.

- Anjo …T’esconjuro…Era um demónio do inferno… - rosnou dona Rozilda.

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