quarta-feira, janeiro 13, 2010


DONA FLOR
E SEUS DOIS
MARIDOS


EPISÓDIO Nº 17



Dom Clemente, o dorso um pouco curvado, atravessou a nave, a caminho da sacristia. No corredor, deteve-se a contemplar aquela estranha imagem onde o artista desconhecido fixara a um só tempo a graça e o cinismo. Levado por que sentimentos o fizera, que espécie de mensagem desejara transmitir?

Possuído pelas paixões humanas, o anjo devorava com olhos devassos a pobre santa. Olhos de frete, como dissera Vadinho, em sua linguagem pitoresca, sorriso indecente, face deslavada, sem compostura. Igual a Vadinho, tanta postura jamais se vira. Não exagerara ele, Dom Clemente, não fizera uma afirmação precipitada ao colocar Vadinho ao lado de Deus, em sua glória?

Aproximou-se da janela rasgada na pedra, fitou o pátio do convento. Ali Vadinho costumava sentar-se sobre a muralha, a seus pés o mar cortado de saveiros. Vadinho dizia:

- Padre, se Deus quisesse mostrar a sua capacidade fazia o 17 dar doze vezes seguidas. Isso é que era um milagre retado. Aí eu chegava e enchia a Igreja toda de flores…

- Deus não se mete em jogo, meu filho…

- Então, padre, ele não sabe o que é bom e o que é ruim. Aquela agonia vendo a bolinha girando, girando na roleta, a gente arriscando a última ficha, o coração disparado…

E num tom de confidência, num segredo só dele e do sacerdote:

- Com Deus não vai saber, padre?

No átrio, dona Rozilda elevava a voz:

- Dinheiro jogado fora…Não há missa que salve o desgraçado. Deus é justo!

Dona Flor, o xale a esconder-lhe a dolorosa face, surgia, ao fundo, apoiava-se em dona Gisa e em dona Norma. Na claridade azul da manhã, a igreja parecia um barco de pedra a navegar.

Só na terça-feira de Carnaval, á noite, a notícia da morte de Vadinho alcançara Nazaré das Farinhas onde dona Rozilda habitava em companhia do filho casado e funcionário da Estrada de Ferro, amargurando a vida da nora, escrava a seu mando ditatorial. Sem perder tempo, transportou-se para a Bahia quarta-feira de cinzas, um dia parecido com ela, a acreditar-se em outro genro seu, António Morais: “Aquilo não é uma mulher, é uma quarta-feira de cinzas, termina com a alegria de qualquer um”. O desejo de situar a maior distância possível entre sua casa e sua sogra era, sem dúvida, um dos motivos por que esse Morais residia, há vários anos, num subúrbio do Rio de Janeiro.

Hábil mecânico, aceitou o convite de um amigo e fora tentar a vida no Sul onde prosperara. Recusava-se a voltar à Bahia mesmo em passeio enquanto “a megera empestasse o ambiente”.

Dona Rozilda, no entanto, não detestava António Morais como não detestava tão pouco a nora. Detestava, sim, a Vadinho, e jamais perdoara a Flor aquele casamento, resultado de vil conspiração contra sua autoridade e suas decisões. No casamento de Morais com Rosália, a filha mais velha, se não fizera gosto, tão pouco dificultara o namoro, não opusera objecções ao noivado. Não se dava bem com ele ou com a nora, porque a natureza de dona Rozilda era mesmo consagrada a infernizar o próximo. Quando não estava contrariando alguém sentia-se vazia e infeliz.

Com Vadinho era diferente: tinha-lhe aversão desde os tempos do namoro com Flor, quando descobrira a rede de logro e engodos em que a enleara o indesejável pretendente. Tomara-lhe ódio para sempre, não podia ouvir-lhe sequer o nome. “Houvesse polícia nessa terra e aquele canalha estaria na cadeia”, repetia, se lhe falassem no genro, se lhe pediam notícias do valdevinos ou mandavam-lhe lembranças.

Quando visitava dona Flor, de raro em raro, era para infernizar-lhe o dia, não tendo outro assunto senão as trampolinagens de Vadinho, sua existência libertina, sua vergonhosa crónica, escândalo permanente e quotidiano.

Ainda da amurada do navio desatava a boca de azedumes aos gritos para dona Norma no cais da Bahiana a esperá-la, a pedido de dona Flor:

- Enfim, o excomungado bateu as botas, hein!

O paquete estava atracando, repleto de uma impaciente população de viajantes atravancados de pacotes, cestos, de sacolas, de embrulhos os mais diversos, contendo frutas, farinha de mandioca, inhame e aipim, carne-de-sol, chuchu e abóboras. Dona Rozilda desembarcava a vociferar:

- Levou a breca, já devia ter estourado há muito tempo!

Dona Norma sentia-se derrotada, dona Rozilda possuía aquela capacidade de deixá-la sem acção, num desânimo completo.
Amanhecera a prestativa vizinha no pequeno cais, transpirando consolação no rosto bondoso, pronta para animar uma sogra em luto e em lágrimas, para em dueto lastimarem a precariedade das coisas desse mundo: hoje se está vivo e saltitante, amanhã num caixão de defuntos.

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