DONA FLOR
E SEUS DOIS
MARIDOS
Ao partir desta para a melhor, o relembrado Gil, o tal molengas sem vontade, deixou a família em sérias aperturas, em precária situação. No seu caso não se tratava apenas de uma frase feita – partiu desta para melhor – de um lugar comum; e sim da expressão da verdade. Fosse o que fosse a esperá-lo nos mistérios do além – paraíso de luz, de música, de anjos luminosos; tenebroso inferno com caldeirões a ferver; o húmido limbo; as peregrinações pelos círculos siderais; ou o nada, o não ser apenas – qualquer coisa seria melhor se comparada à vida em comum com dona Rozilda.
Magro e silencioso, cada dia mais magro e mais silencioso, seu Gil sustentava sua tribo com modestas representações comerciais, produtos de reduzida aceitação, parco lucro apenas suficiente para as despesas; a gororoba diária, o aluguel do primeiro andar na Ladeira do Alvo, as roupas dos meninos, os arrotos de burguesia de dona Rozilda com seus caprichos de grandeza, a ambição de conviver com famílias importantes, de penetrar nos círculos de gente apatacada.
Embirrava dona Rozilda com a maioria dos vizinhos, desprotegidos da sorte – balconistas de lojas e armazéns, empregados de escritório, caixeiros e costureiras. Desprezava essa gentalha incapaz de esconder sua pobreza; dava-se ares, carregada de basófia, atenciosa apenas para com alguns habitantes da Ladeira, as “famílias de representação” como repetia irada ao finado Gil quando o pegava em flagrante chupitando uma cervejinha na pouca recomendável companhia de Cazuza Funil, bicheiro e facadista, metido a filósofo, um dos mais discutíveis locatários do Alvo. Funil não era nome de família, será necessário esclarecer? Apenas significativo apodo, caracterizando-lhe a goela sempre aberta, a sede insaciável.
Por que Gil não frequentava o dr. Carlos Passos, médico de clientela, o engenheiro vale, mandachuva na Secretaria de Viação, o telegrafista Peixoto, senhor de idade, às vésperas da aposentadoria, tendo alcançado o cume da carreira postal, o jornalista Nacif, ainda novo mas arrecadando um dinheirinho apreciável com o Lojista Moderno, publicação dedicada, a acreditar em seu expediente “à intransigente defesa do comércio baiano”, todos eles igualmente vizinhos na Ladeira, “os de representação?” O parvo do marido não sabia sequer escolher suas amizades; quando não estava com Funil no Ponto Fino, na Baixa dos Sapateiros, metia-se na casa de Antenor Lima, a jogar gamão ou damas, talvez a única alegria verdadeira da sua vida. Antenor Lima, comerciante estabelecido no Taboão e um dos mais destacados fregueses de Gil, mereceria classificar-se na lista dos vizinhos representativos, não fosse sua pública e notória mancebia com a negra Juventina, inicialmente sua cozinheira. Instalada agora na janela da casa própria do lojista, como empregada para varrer e arrumar, insolente e respondona, seus bate-bocas com dona Rozilda fizeram época na Ladeira do Alvo.
Pois bem: no passeio desse rebotalho sentava-se Gil, todo cheio de salamaleques, tratando a ordinária como se ela fosse senhora casada no padre e no juiz.
De nada adiantavam os esforços de dona Rozilda na direcção das amizades influentes: a família Costa, descendente do velho político; dona de imensa roça no Matatu – o político virara até nome de rua e o neto Nilson era banqueiro e industrial; os Marinho Falcão, de Feira de Sant’Ana, em cujo armazém Gil fizera seu aprendizado quando jovem – fora seu João Marinho quem lhe emprestara dinheiro para iniciar-se no capital; o dr. Henriques Dias Tavares, director de repartição, um cabeça de ouro, assinava artigos nos jornais, nome sonoro a rolar em sua boca com um gosto de parentesco: “é meu compadre, baptizou o meu Heitor”.
Ao citar tais relações de categoria, espinafrando as de Gil, interrogava dramática os interlocutores, a vizinhança, a ladeira, a cidade e o mundo: que mal fizera ela a Deus para merecer o castigo daquele esposo, incapaz de dar-lhe padrão de vida condigno, à altura de sua linhagem e de seu meio?
Tudo quanto era representante comercial prosperava, ampliando freguesia e escritório, vendo crescer o montante mensal de vendas, conseguindo novas e valiosas corretagens.
Muitos compravam casa própria, quando nada terreno onde mais tarde construir. Alguns davam-se até ao luxo do automóvel, como um conhecido deles, Rosalvo Medeiros, alagoano arribado de Maceió há poucos anos, as mãos uma na frente outra atrás, ambas agora na direcção de um Studebaker.
E SEUS DOIS
MARIDOS
EPISÓDIO Nº 21
Ao partir desta para a melhor, o relembrado Gil, o tal molengas sem vontade, deixou a família em sérias aperturas, em precária situação. No seu caso não se tratava apenas de uma frase feita – partiu desta para melhor – de um lugar comum; e sim da expressão da verdade. Fosse o que fosse a esperá-lo nos mistérios do além – paraíso de luz, de música, de anjos luminosos; tenebroso inferno com caldeirões a ferver; o húmido limbo; as peregrinações pelos círculos siderais; ou o nada, o não ser apenas – qualquer coisa seria melhor se comparada à vida em comum com dona Rozilda.
Magro e silencioso, cada dia mais magro e mais silencioso, seu Gil sustentava sua tribo com modestas representações comerciais, produtos de reduzida aceitação, parco lucro apenas suficiente para as despesas; a gororoba diária, o aluguel do primeiro andar na Ladeira do Alvo, as roupas dos meninos, os arrotos de burguesia de dona Rozilda com seus caprichos de grandeza, a ambição de conviver com famílias importantes, de penetrar nos círculos de gente apatacada.
Embirrava dona Rozilda com a maioria dos vizinhos, desprotegidos da sorte – balconistas de lojas e armazéns, empregados de escritório, caixeiros e costureiras. Desprezava essa gentalha incapaz de esconder sua pobreza; dava-se ares, carregada de basófia, atenciosa apenas para com alguns habitantes da Ladeira, as “famílias de representação” como repetia irada ao finado Gil quando o pegava em flagrante chupitando uma cervejinha na pouca recomendável companhia de Cazuza Funil, bicheiro e facadista, metido a filósofo, um dos mais discutíveis locatários do Alvo. Funil não era nome de família, será necessário esclarecer? Apenas significativo apodo, caracterizando-lhe a goela sempre aberta, a sede insaciável.
Por que Gil não frequentava o dr. Carlos Passos, médico de clientela, o engenheiro vale, mandachuva na Secretaria de Viação, o telegrafista Peixoto, senhor de idade, às vésperas da aposentadoria, tendo alcançado o cume da carreira postal, o jornalista Nacif, ainda novo mas arrecadando um dinheirinho apreciável com o Lojista Moderno, publicação dedicada, a acreditar em seu expediente “à intransigente defesa do comércio baiano”, todos eles igualmente vizinhos na Ladeira, “os de representação?” O parvo do marido não sabia sequer escolher suas amizades; quando não estava com Funil no Ponto Fino, na Baixa dos Sapateiros, metia-se na casa de Antenor Lima, a jogar gamão ou damas, talvez a única alegria verdadeira da sua vida. Antenor Lima, comerciante estabelecido no Taboão e um dos mais destacados fregueses de Gil, mereceria classificar-se na lista dos vizinhos representativos, não fosse sua pública e notória mancebia com a negra Juventina, inicialmente sua cozinheira. Instalada agora na janela da casa própria do lojista, como empregada para varrer e arrumar, insolente e respondona, seus bate-bocas com dona Rozilda fizeram época na Ladeira do Alvo.
Pois bem: no passeio desse rebotalho sentava-se Gil, todo cheio de salamaleques, tratando a ordinária como se ela fosse senhora casada no padre e no juiz.
De nada adiantavam os esforços de dona Rozilda na direcção das amizades influentes: a família Costa, descendente do velho político; dona de imensa roça no Matatu – o político virara até nome de rua e o neto Nilson era banqueiro e industrial; os Marinho Falcão, de Feira de Sant’Ana, em cujo armazém Gil fizera seu aprendizado quando jovem – fora seu João Marinho quem lhe emprestara dinheiro para iniciar-se no capital; o dr. Henriques Dias Tavares, director de repartição, um cabeça de ouro, assinava artigos nos jornais, nome sonoro a rolar em sua boca com um gosto de parentesco: “é meu compadre, baptizou o meu Heitor”.
Ao citar tais relações de categoria, espinafrando as de Gil, interrogava dramática os interlocutores, a vizinhança, a ladeira, a cidade e o mundo: que mal fizera ela a Deus para merecer o castigo daquele esposo, incapaz de dar-lhe padrão de vida condigno, à altura de sua linhagem e de seu meio?
Tudo quanto era representante comercial prosperava, ampliando freguesia e escritório, vendo crescer o montante mensal de vendas, conseguindo novas e valiosas corretagens.
Muitos compravam casa própria, quando nada terreno onde mais tarde construir. Alguns davam-se até ao luxo do automóvel, como um conhecido deles, Rosalvo Medeiros, alagoano arribado de Maceió há poucos anos, as mãos uma na frente outra atrás, ambas agora na direcção de um Studebaker.
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