quarta-feira, janeiro 20, 2010


DONA FLOR
E SEUS DOIS
MARIDOS

EPISÓDIO Nº 23



De há muito dona Rozilda controlava com mão de ferro o parco dinheiro das comissões, entregando semanalmente ao representante comercial os estritos níqueis para o bonde e para o maço de cigarros Aromáticos – um maço cada dois dias. Pois, ainda assim, o dinheiro economizado mal deu para as despesas do enterro, das roupas de luto, para os dias de nojo. Comissões a receber das últimas vendas, quase não existiam, uma ridicularia, e dona Rozilda viu-se com o filho rapazola e ginasiano e as duas filhas mocinhas – Flor apenas adolescente – e sem fonte de renda.

Nem por ser ela quem era, agre e desabrida, de convivência desagradável e difícil, nem por isso devem negar-se ou esconder suas qualidades positivas, sua decisão e força de vontade, e tudo quanto fez para completar a criação dos filhos e para manter-se pelo menos na posição onde a deixara a morte do marido, sem rolar Ladeira do Alvo abaixo para os cantos de rua ou para os sórdidos quartos dos casarões do Pelourinho.

Agarrou-se ao sobrado com toda sua violenta obstinação. Mudar-se dali para moradia mais barata significava o término de todas as suas esperanças de ascensão social. Precisava manter Heitor nos estudos até ao fim do curso secundário, empregá-lo depois, e casar as meninas, casá-las bem. Para isso era preciso não descer, não deixar se arrastar pela pobreza sem máscara, exposta e despudorada, sem pejo nem vergonha. Ela, dona Rozilda, sentia vergonha da pobreza, ah!, muita vergonha, como de um delito a merecer castigo.

Tinha de permanecer no andar da Ladeira do Alvo, custasse o que custasse.

Assim explicou ao cunhado quando ele viera emprestar-lhe as economias de dona Lita (pagas depois por dona Rozilda, tostão a tostão, diga-se em sua honra). Nem casa de preço razoável do fim do mundo da Plataforma, nem porão habitável na Lapinha, nem quarto e sala sublocados nas Portas do Carmo; manteve-se plantada na Ladeira do Alvo, no sobrado de aluguel relativamente elevado, sobretudo para quem, como ela, não dispunha de posses, nem muitas nem poucas.

Dali, das sacadas amplas do primeiro andar, podia olhar o futuro com confiança: nem tudo estava perdido. Modificaria os planos anteriores sem desistir de suas pretensões. Se de imediato cedesse, largando a casa bem posta, mobilada, com tapetes e cortinas, indo para um cortiço qualquer, já não lhe seriam permitidas sequer esperanças e ilusões. Veria Heitor atrás de um balcão de secos e molhados, quando muito de uma loja, caixeirinho a vida inteira; veria as meninas com idêntico destino, se não fossem terminar garçonetes de bares ou cafés, no frete dos patrões e dos fregueses, caminho directo para a zona, para o horror das ruas de mulheres-damas. Dali, do sobrado, podia resistir a todas essas ameaças. Abandoná-lo era como render-se sem luta.

Por isso recusou oferta de emprego de balconista para Heitor, arranjado por Antenor Lima. Assim com não admitiu discutir com Rosália, quando a filha lhe apareceu disposta a trabalhar, como uma espécie de recepcionista e secretária, na Foto Elegante, florescente estabelecimento da Baixa do Sapateiro, onde Andrés Gutieérrez, espanhol, moreno e de bigodinho recortado, explorava a arte fotográfica em suas mais diversas modalidades: desde os instantâneos três por quatro, para carteiras de identidade e profissionais, até “às incomparáveis ampliações coloridas, verdadeiras maravilhas” passando pelos retratos dos mais diversos tamanhos e pelos flagrantes de baptizados, matrimónios, primeiras comunhões e outros festivos eventos, dignos de amarelecida eternidade dos álbuns familiares. Onde havia uma fotografia a fazer, lá surgia Andrés Gutiérrez com sua máquina e seu ajudante, um chinês sem idade e tão velho, encarquilhado e suspeito. Rumores circulavam – haviam chegado aos ouvidos de dona Rozilda, sempre aguçados para esses falatórios – sobre Andrés, sua Foto Elegante, seu ajudante e amplitude do negócio. Diziam ser de sua produção certos postais vendidos pelo chinês em envelopes fechados, supra sumo da arte naturalista, nus artísticos de garantido sucesso. Para tais fotos, segundo as comadres, posavam mocinhas pobres e fáceis, em toca de uns magros mil-réis. De passagem, usufruía delas certamente Andrés, e, quem sabe? O chinês; as beatas contavam horrores a propósito do atelier de fotografia. Não é de admirar-se ter dona Rozilda corrido com a filha, quando ela, entusiasmada e ingénua, lhe revelou a oferta do espanhol:

- Se me falar disso outra vez, te arranco o couro, te dou uma surra de criar bicho…

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