segunda-feira, janeiro 25, 2010


DONA
FLOR
E SEUS DOIS


MARIDOS

EPISÓDIO Nº 27



Tanto tempo esperaram, semanas, meses e anos, tão bem postas e arranjadas, e nenhum fidalgo apareceu; nem rapaz aristocrata da Barra ou da Graça, nem filho de coronel de cacau, nenhum senhor do alto comércio, sequer galego enriquecido no duro labor dos armazéns e padarias.

Quem chegou foi António Morais com sua oficina de mecânico, sua competência autodidacta, seu honrado macacão negro de graxa. Chegou na hora certa e por isso foi bem recebido. Já Rosália chorava lágrimas de vitalina condenada à solidão e à beatice, dona Rozilda não teve forças para reagir. Não era o genro antevisto nas longas vigílias de trabalho no pedal da máquina ou no calor do fogão. Não mais podia prender, porém, em considerações e argumentos ou na ira ameaçadora, o fustigado ímpeto de Rosália, cujos vinte (e tantos) anos sadios ansiavam por marido.

Ao demais, se António Morais não era rico nem importante, pelo menos não era empregado de patrão nenhum, tinha sua pequena oficina afreguesada, ganhava com que sustentar mulher e filhos. Dona Rozilda curvou-se ante o destino, meio a pulso, mas curvou-se, que jeito?

Naquele tempo já Heitor conseguira colocação na Estrada de Ferro de Nazareth, por intermédio de seu padrinho, Dr. Luís Henrique, e fora viver na cidade de Recôncavo, vindo à Capital raramente. Tinha futuro no emprego, dona Rozilda não precisava de preocupar-se com ele. Também Flor começara a dar cursos de cozinha a moças e senhoras, ganhando dinheiro e fama de professora competente. Agora ela carregava com a maior parte das despesas da casa, mesmo porque Rosália, amedrontada com o correr do tempo, despendia seus ganhos em enfeitar-se, em vestidos e sapatos, perfumes e rendas.

António Morais reparara em Rosália na matiné do cinema Olímpia, num dia de palco, quando, além dos dois filmes e do seriado, seu Mota, o empresário, exibia artistas de passagem na Bahia, restos de mambembes desfeitos em excursões pelo interior, famintas estrelas de embaçada luz. Enquanto “Mirabel, o sonho sensual de Varsóvia”, polaca venerável, cansada de guerra, das ribaltas e dos leitos dos castelos, rebolava uma antiga bunda emurchecida para delírio da criançada ali a educar-se, António Morais divisou em cadeiras próximas dona Rozilda e as duas filhas: Rosália na excitada espera, Flor desabrochando nos peitos e nas ancas.

Não mais teve olhos o mecânico para o consumido bamboleio do “sonho de Varsóvia”. O petulante olhar de Rosália cruzou sua mirada súplice. Na saída, o moço acompanhou, a prudente distância, mãe e filhas, localizando moradia burguesa da Ladeira do Alvo. Rosália apareceu por instantes na sacada, deixou um sorriso a esvoaçar.

No outro dia, após a janta, António Morais penava ladeira acima ladeira abaixo, estagiando na calçada fronteira ao sobrado. Da janela Rosália espreitava, animadora. O mecânico subia e descia, os olhos postos na sacada alta, assobiando modinhas. Daí a pouco, Rosália, escoltada por Flor, surgia ao pé da escada. Num passo de urubu-malandro, Morais encostou.

Dona Rozilda, sempre alerta, ainda na matiné reparara no namoro. E, ao ver Rosália esfogueada e indócil, saiu a tomar informações do sujeito; Antenor Lima o conhecia, forneceu notícias concretas e favoráveis: mecânico de mão-cheia, oficina própria, nos Galés, um monstro de trabalho. Menino de nove anos, António Morais perdera pai e mãe num desastre de marinete, ficara solto nas ruas e em vez de juntar-se aos capitães da areia e sair para a ventura da vagabundagem e da má vida, metera-se na oficina de Pé de Pilão, um negro maior do que a Catedral, mecânico e boa praça. Na oficina o molecote fazia de tudo, pau para toda a obra, esperto como ele só. Sem ordenado fixo, mas com direito de ali dormir, sem falar nas gorjetas, algumas gordas. Sozinho aprendera a ler e a escrever, com Pé de Pilão aprendera o ofício, e ainda jovem começara a trabalhar por sua conta e risco, cobrando uns biscates. Tinha as mãos maneiras e a cabeça viva: os motores de automóvel não guardavam segredos para a sua curiosidade. Não era nenhum doutor, certamente, nem rapaz de posses. Mas poucos mecânicos podiam competir com ele. Ganhava seu dinheiro seguro, daria um marido de primeira, que diabo a mais pretendia Rosália, se não era nenhuma princesa nem possuía roça de cacau? – perguntava o malcriado Lima à enganjenta e resmungona vizinha.

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