terça-feira, janeiro 26, 2010




DONA
FLOR

E SEUS
DOIS

MARIDOS


EPISÓDIO Nº 28



Outros conhecidos confirmaram essa extensa crónica do comerciante, e dona Rozilda, após aconselhar-se com o seu compadre, doutor Luís Henrique, um ruybarbosa de sabedoria – conselhos inestimáveis – e de muito pesar os prós e os contras, decidiu a favor do mecânico.

Não era, repetia, o genro dos seus sonhos, o príncipe de sangue nobre e arcas de ouro. Sangue nobre só o herdara Morais de um ancestral distante, Obitikô, príncipe de tribo africana aportado escravo na Bahia, sangue azul a misturar-se com sangue plebeu de degradados lusitanos e de holandeses mercenários. Resultou da mistura um pardavasco claro de sorriso fácil, simpático moreno. Quanto a arcas de ouro, o pé-de-meia com as economias do mecânico não lhe permitia sequer montar casa imediatamente. Mas Rosália trancara-se em sua babada paixão, não aceitava discutir sobre as obscuras origens, o honrado ofício e as magras poupanças do rapaz, e, ante essa Rosália espinhosa, de resposta insolente e fácil calundu, dona Rozilda baixou a cabeça. E, assim, na quinta ou sexta aparição nocturna de Morais – todo engomado em branco, o chapéu quebrado sobre o olho, os sapatos de duas cores, irresistível! – ela o interpelou.

Estavam os dois amorosos num enleio, olhos nos olhos, as mãos dadas falando bobagens, quando, das sombras da escadaria, dona Rozilda interrompeu inesperada e inquisidora, dura voz terrorista:

- Rosália, minha filha, quer me apresentar ao cavalheiro?

Feitas as apresentações, Rosália engrolando as palavras, Morais todo sem jeito, dona Rozilda foi logo arremetendo, sem nenhuma cerimónia nem consideração:

- Filha minha não namora em pé de escada nem em canto de rua, não sai sozinha para passear com namorado, não crio filha para divertimento de gaiato nenhum…

- Mas eu…

- Quem quiser conversar com filha minha tem de declarar antes suas intenções.

António Morais afirmou a pureza matrimonial das suas mais recônditas intenções, não era moleque para abusar das filhas dos outros. Respondeu com presteza e modéstia ao minucioso interrogatório, dona Rozilda comprovando informes, sobretudo os referentes à oficina.

Foi o mecânico aprovado e admitida oficialmente sua presença nocturna à porta do sobrado, junto à qual, a partir daquela conferência, Rosália o esperava sentada numa cadeira. Da janela dona Rozilda, no controle da moral familiar; filha sua não era para o desfrute de nenhum vadio. Assim, quando Morais adiantava a mão terna para a terna mão da moça, ouvia-se o repreensivo pigarro de dona Rozilda caindo lá de cima:

- Rosália!

Com isso apressou o noivado, Morais ansioso de maior liberdade, de intimidade menos vigiada. Noivo, passou a frequentar a casa, a sair com Rosália aos domingos para a matinê, levando Flor de contrapeso, com ordens terminantes de vigiar e controlar os enamorados, de impedir beijos e ternuras; dona Rozilda exigia o máximo respeito. Mas Flor não nascera para tira de polícia; compreensiva e solitária, voltava as costas para a irmã e futuro cunhado, absorvia-se no filme, a
mastigar confeitos,
deixando em paz o casal e sua urgência, suas bocas e mãos atarefadas.

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