sábado, janeiro 30, 2010


DONA
FLOR
E SEUS DOIS
MARIDOS


EPISÓDIO Nº 32



Para o acto solene, no salão nobre da Faculdade, dona Rozilda vestiu-se de sogra, toda armada em tafetá, majestosa como um peru de roda, a rir até pelos babados das mangas, um pente de dançarina espanhola espetado no coque. No baile de formatura, For resplandecia em rendas e files, não teve descanso. Não falhou uma só contradança, tantos os cavalheiros a solicitarem-na. Mas, nem assim concedeu esperança ao recém-formado.

Nem mesmo quando ele, em vésperas de partir para a Amazónia longínqua, veio visitá-las, trazendo o pai para melhor impressionar. Chamava-se Ricardo o graúdo paraense, um gigante, vozeirão de trovoada, os dedos pejados de jóias – dona Rozilda quase desmaia ao fitar tanta pedra preciosa. Havia um carbonado sem tamanho, valia pelo menos cinquenta contos de réis, ai, meu Deus!

O velho falou das suas terras, dos índios mansos e da borracha, das histórias do rio Amazonas. Falou também da alegria de ver o filho doutor, de canudo de médico. Só lhe faltava agora vê-lo casado com moça direita, modesta e sincera, não fazia questão de dinheiro, dinheiro ele juntara bastante – movia os dedos, os brilhantes faiscavam, iluminando a sala. Queria nora que lhe desse netos e netas para encherem de bulha e calor aquela austera casa de mármore, em Belém, onde o velho Ricardo, viúvo, vivera solitário, os anos da faculdade de Pedro. Falava e olhava para Flor, como à espera de uma palavra, de um gesto, de um sorriso; se aquilo não era introdução para um pedido de casamento, então dona Rozilda era uma ignorante de tais coisas.

Tremia ela de emoção e ânsia, chegara a hora abençoada, jamais estivera tão perto de seus objectivos, fitava a bobela da filha esperando seu acordo tímido porém firme. Mas Flor apenas disse com sua voz de madorna:

- Não vai faltar moça bonita e direita para casar com Pedro, ele bem merece. Eu queria que fosse aqui, na Bahia, que era para eu preparar o banquete de casamento.

Pedro Borges recolheu sem ressentimentos a aliança de ouro já adquirida, o velho Ricardo pigarreou, mudou de assunto. Dona Rozilda sentiu-se mal, ofegante, o coração descarrilhando. Saiu da sala num repente indignada, temia ter uma coisa, desejou ver a filha morta e enterrada, a ingrata, a bestalhona, a idiota, inimiga da própria mãe, amaldiçoada! Como se atrevia ela a recusar a mão do doutor – agora realmente doutor – do moço rico, do herdeiro das ilhas, dos rios e dos índios, dos mármores todos, dos faiscantes anéis, ai como se atrevia a infeliz bastarda?

Ah!, que muro de ódio e inimizade, de imperdoável incompreensão, intransponível de rancor, não se ergueria entre mãe e filha, juntas para sempre e para sempre separadas, se naquele começo de ano, logo após a partida do desprezado Borges, não houvesse surgido Vadinho! Ah! diante dos seus títulos, da posição e fortuna de Vadinho – pelo próprio Vadinho e por alguns dos seus amigos, fora dona Rozilda amplamente informada – não passava o paraense de um pobretão, com todo o mármore do seu palácio e seus doze criados; de um indigente, com toda sua terra e
toda sua
água.

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