terça-feira, fevereiro 02, 2010


DONA
FLOR
E SEUS DOIS
MARIDOS


EPISÓDIO Nº 34




Ficava delicado, conversador, a imaginação extravasando, sem limites. A figura do estudante pobre, “perpétuo estudante e perpetuamente sequioso”, imagem por ele criada e da qual vivia, cedia lugar ao homem moço, importante e vitorioso, promovido a engenheiro agrónomo, quando não a livre-docente da Escola, enumerando vantagens, galgando cargos e conquistando mulheres. Danava-se a contar histórias, e como as contava! Era um mestre da narrativa oral, criador de tipos e de suspense, um clássico da boa prosa.

Se a bebedeira se prolongava, no entanto, ao fim da noite esse optimismo e essa euforia se esfumavam, e, ao término da esbórnia, envolvia-se Mirandão em lástima e lamento, a flagelar-se, lancinante, em impiedosa autocrítica, recordando a esposa vítima de sua degradação, os quatro filhos sem comida, toda a família ameaçada de despejo, e ele ali, nos antros de jogos e nos prostíbulos. “Sou um miserável, um crápula, um canalha” alardeava um Mirandão pungente, com remorsos e sem malícia, um moralista. Mas essa segunda e lamentosa fase só de raro em raro acontecia, só em ocasiões de porres monumentais.

Às vinte e três e trinta, porém, na casa em festa do major Pergentino Pimentel, aposentado da Polícia Militar do Estado, encontrava-se Mirandão contente com o mundo, disposto a cordial e proveitoso intercâmbio de ideias com dona Rozilda.

Acabara de comer e beber à tripa forra na sala de jantar, provando todos os pratos, repetindo alguns deles. Num desperdício de comida, ali se exibiam os quitutes baianos, vatapá e efó, abará e caruru, moquecas de siri mole, de camarão, de peixe, acarajá e acaça, galinha de xinxim e arroz de haussá, além de montes de frangos, perus assados, pernis de porco, postas de peixe frito para algum ignorante que não apreciasse o azeite de dendê (pois como considerava Mirandão de boca cheia e com desprezo, há todo o tipo de bruto nesse mundo, sujeitos capazes de qualquer ignomínia). Toda essa comilança regada a alua, a cachaça, a cerveja e a vinho português. O Major realizava sua festa há mais de dez anos, cumprindo severa obrigação de candomblé, desde quando os orixás haviam-lhe salvo a esposa ameaçada de morte com pedra nos rins.

Não media despesa, juntando dinheiro o ano todo para gastá-lo satisfeito naquela noite. Mirandão se atolara, garfo respeitável e copo mais ainda. Agora, empanzinado, afrontado de tanto comer e beber, só mesmo um bom cavaco para ajudar a digestão.

Na sala, os pares desdobravam-se no tango argentino, ao piano Joãozinho Navarro. Dizendo-se Joãozinho Navarro, para os entendedores já se disse tudo, não havia pianista mais requestado na Bahia, e certa gente, como o juiz de nome Coqueijo muito entendido em música, ligava o rádio só para ouvi-lo a dedilhar num programa de canções populares. E, pela madrugada, no Tabaris, não era seu piano o motivo da maior animação? Festa particular dificilmente o obtinha, não lhe sobrando tempo para tais amadorismos. Indefectível, porém, na brincadeira em casa do Major, a
quem Joãozinho não podia enfonar, era-lhe devedor de gentilezas antigas.

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