sexta-feira, fevereiro 12, 2010


DONA
FLOR
E SEUS
DOIS
MARIDOS


EPISÓDIO Nº 43

O namoro de Vadinho e Flor desembocou directo no casamento, pois noivado não houve, como logo adiante se constatará, exibindo-se causa e razão dessa anomalia a romper os procedimentos habituais e consagrados em todas as famílias que se prezam. Namoro, aliás, dividido em duas etapas distintas, perfeitamente delimitadas, cada uma delas com suas características próprias.

A primeira, plácida e risonha, toda azul e rosa, um céu aberto, verdadeira festa, a concórdia universal. A segunda, confusa e perseguida, cor do vitríolo e do ódio, o inferno na terra, a malquerença, a repugnância, a guerra declarada. Durante a primeira fase, dona Rozilda esteve irreconhecível de tanta gentileza e compreensão; colaboração activa e devotada para o sucesso do idílio.

Viu-se depois dona Rozilda a espumar abominação, rancor e vingança – espectáculo talvez pitoresco mas pouco agradável – disposta a empregar todos os recursos para impedir o matrimónio da filha com aquele tipo imundo – “verme, pústula, poça de pus. Toda essa podridão – verme, pústula, poça de pus – era Vadinho, antes o mais perfeito rapaz da Bahia, o pretendente ideal, belo e simpático, coração generoso, pérola de moço, impoluto carácter, adamantino.

No ledo engano nascido da emaranhada novela posta de pé por Mirandão na festa do Major Tiririca, confirmada e desenvolvida graças a imprevistas circunstâncias, permanecera feliz dona Rozilda cerca de dois meses, dois memoráveis meses quando calcou sob o tacão dos sapatos toda a ladeira do Alvo e adjacências, da negra Juventina com seus ares de senhora até o doutor Carlos Passos com a sua própria clientela. Exibia influência, intimidade nos círculos governamentais, nas altas esferas, intimidade com o poder, personificado em Vadinho. E exibia sobretudo o moço namorado da filha, com sua elegância cafageste, sua lábia, sua conversa bonita, sua prosápia. Vadinho se lhe afigurava um deus-menino, era tudo para ela. E para ele tudo era pouco, dona Rozilda agitava-se num afã de agradar, de cativar o rapaz, de amarrá-lo.

Para manter dona Rozilda enleada em cegueira assim completa, concorreu grandemente curioso quiproquó. Entre as amigas de Flor, sua colega de escola, havia uma pobre Célia, além de pobre, aleijada, com uma perna defeituosa, manca. A duras penas, “roendo beira de penico”, como resumia dona Rozilda, cursou a Escola Normal e diplomou-se professora. Candidata a um lugar no ensino primário estadual, lutava há meses para obtê-lo, sem conseguir sequer ser recebida pelo Director de Educação. Dona Rozilda tinha-lhe estima e a protegia. Talvez, porque sendo a moça tão infeliz e humilde, a seu lado ela e Flor pareciam umas ricaças.

Atenta, escutava a manca queixar-se da vida e dos grandes do mundo, dizendo horrores dos funcionários, e revelando particulares sórdidos daqueles “vampiros da educação” como sibilava por entre os dentes escuros e podres.

Ali só obtinham nomeações as oferecidas, dispostas a aceitar convites para passeios à noite em Amarelina, Pituba, Itapoã, para festinhas íntimas, umas casteleiras!

Moça direita não tinha chance, mofava nas cadeiras de couro da ante-sala.

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