DONA
FLOR
E SEUS
DOIS
MARIDOS
De tanto nelas mofar, Célia constituíra-se picante repositório de malignas anedotas sobre funcionários, chefes de secção, sem falar no Director de Educação, invisível personagem sobre o qual, no entanto, a rejeitada postulante tudo sabia: os hábitos, os bens, as preferências, a esposa, os filhos, a rapariga; nada lhe escapava. Jamais, porém, conseguira ser por ele recebida e expor o seu caso.
Ora, logo nos dias iniciais do namoro, certa noite, a professora em desespero – o prazo para as nomeações de novas mestras esgotava-se naquela semana – deparou com Vadinho em casa de Flor e a ele foi apresentada.
Dona Rozilda gostaria de ver a moça empregada e gostaria mais ainda de afirmar perante a vizinhança o prestígio do rapaz, do pretendente a genro, dispondo de empregos e vagas, mandando na administração do Estado. Prestígio a ser utilizado por ela, dona Rozilda, a seu belo prazer.
Estava, sem dúvida, a viúva enleada numa rede de enganos sobre a personalidade do gabiru a rondar sua filha mas não cometia erro quando, ao descrever para os conhecidos aquele carácter sem jaca, elogiava-lhe o bom coração: para Vadinho todo o sofrimento era injusto e odioso. Assim, apenas dona Rozilda lhe contou a história de Célia, dramatizando detalhes, valorizando-lhe o aleijão (mesmo se quisesse não podia aceitar os licenciosos convites dos canalhas da repartição, não tinha alicerces para tanto), ampliando as injustiças, multiplicando a fome da moça e de seus cinco irmãos, da mãe reumática e do pai guarda nocturno, logo Vadinho simpatizou com a nobre causa e fez-se seu campeão. Decidido realmente a falar sobre o assunto com seus conhecidos de jogo, alguns dos quais tinham certa influência – jurou veemente a dona Rozilda e a Flor exigir do Director de Educação no dia seguinte pela manhã na hora do despacho com o governador, a imediata nomeação da professora. Não passaria do dia seguinte: retomasse Célia à Directoria pela tarde e procurasse o titular, nomeação e posse eram favas contadas.
- Pode deixar comigo…
- Pode deixar com ele… - repetia dona Rozilda.
Flor nada disse, apenas sorriu, não lhe importando se Vadinho gozava ou não de tanto prestígio, preferindo até ser ele menos influente e por consequência menos ocupado. Passava dias sem aparecer, sem vir conversar ao pé da escada, e quando vinha, trazia a face estremunhada, sonolenta, das noites em claro a despachar com o Governo.
Tomou Vadinho nome completo da candidata e os demais dados necessários. Novamente Célia escreveu aquela fria literatura num pedaço de papel e sem esperanças: muitas vezes já o havia feito. Tantos pedidos e recomendações e nenhuma consequência. Por que aquele almofadinha enxerido, com um ar velhaco, de deboche, um pé-rapado certamente, por que logo ele iria lhe obter o emprego? Até o padre Barbosa lhe dera um cartão para o Director, e, se o padre nada conseguira, quando mais esse tal namorado de Flor; quem perdera prestígio para esse tipo achar? Boa bisca não era ele, via-se na cara tresnoitada. Célia acumulara cepticismo e amargura a arrastar a perna cambaia pelas salas hostis da Directoria de Educação. A felicidade dos outros não a enternecia, nem mesmo a daqueles raros desejosos de ajudá-la, penalizados de sua sorte. Seu coração estava seco e árido e, ao rabiscar os nomes do pai e da mãe, a data de nascimento e o ano de formatura fazia-o certa de perder tempo e esforço, aquele biltre não ia tornar nenhuma providência, ela estava farta desses pinóias emproados: promessas fáceis e mais nada. Mas, que jeito? Dona Rozilda estava toda caída pelo gabola, doutor Waldomiro para cá doutor Waldomiro para lá, e ela, Célia, ia filar o jantar da velha fogueteira. Quanto ao sujeitinho, bastava olhar para a cara dele e logo se via qual o seu desiderato: comer os tampos de Flor e quebrar no beco, sumir num adeus e nunca mais.
Era Célia injusta com Vadinho, pois para servi-la fez o rapaz naquela noite o roteiro completo das casas de jogo, numa dupla urucubaca: perdeu quanto tinha no bolso e não deparou com um só conhecido importante a quem expulsasse o pequeno drama da professora e pedisse por ela. Nem Giovanni Guimarães, nem Mirabeau Sampaio, nem seu xará Waldomiro Lins, nenhum deles apareceu, como se todas as suas relações influentes houvessem entrado em recesso, abandonando a roleta, o bacará, o grande e pequeno, a ronda, o vinte-e-um.
Demorou-se Vadinho noite afora, e a figura mais ilustre a aparecer foi Mirandão, com quem terminou indo cear um sarapatel de arromba em casa de Andreza, filha de Oxum – Zambeta, mirrada, e ainda por cima, com esse azar…
FLOR
E SEUS
DOIS
MARIDOS
EPISÓDIO Nº 44
De tanto nelas mofar, Célia constituíra-se picante repositório de malignas anedotas sobre funcionários, chefes de secção, sem falar no Director de Educação, invisível personagem sobre o qual, no entanto, a rejeitada postulante tudo sabia: os hábitos, os bens, as preferências, a esposa, os filhos, a rapariga; nada lhe escapava. Jamais, porém, conseguira ser por ele recebida e expor o seu caso.
Ora, logo nos dias iniciais do namoro, certa noite, a professora em desespero – o prazo para as nomeações de novas mestras esgotava-se naquela semana – deparou com Vadinho em casa de Flor e a ele foi apresentada.
Dona Rozilda gostaria de ver a moça empregada e gostaria mais ainda de afirmar perante a vizinhança o prestígio do rapaz, do pretendente a genro, dispondo de empregos e vagas, mandando na administração do Estado. Prestígio a ser utilizado por ela, dona Rozilda, a seu belo prazer.
Estava, sem dúvida, a viúva enleada numa rede de enganos sobre a personalidade do gabiru a rondar sua filha mas não cometia erro quando, ao descrever para os conhecidos aquele carácter sem jaca, elogiava-lhe o bom coração: para Vadinho todo o sofrimento era injusto e odioso. Assim, apenas dona Rozilda lhe contou a história de Célia, dramatizando detalhes, valorizando-lhe o aleijão (mesmo se quisesse não podia aceitar os licenciosos convites dos canalhas da repartição, não tinha alicerces para tanto), ampliando as injustiças, multiplicando a fome da moça e de seus cinco irmãos, da mãe reumática e do pai guarda nocturno, logo Vadinho simpatizou com a nobre causa e fez-se seu campeão. Decidido realmente a falar sobre o assunto com seus conhecidos de jogo, alguns dos quais tinham certa influência – jurou veemente a dona Rozilda e a Flor exigir do Director de Educação no dia seguinte pela manhã na hora do despacho com o governador, a imediata nomeação da professora. Não passaria do dia seguinte: retomasse Célia à Directoria pela tarde e procurasse o titular, nomeação e posse eram favas contadas.
- Pode deixar comigo…
- Pode deixar com ele… - repetia dona Rozilda.
Flor nada disse, apenas sorriu, não lhe importando se Vadinho gozava ou não de tanto prestígio, preferindo até ser ele menos influente e por consequência menos ocupado. Passava dias sem aparecer, sem vir conversar ao pé da escada, e quando vinha, trazia a face estremunhada, sonolenta, das noites em claro a despachar com o Governo.
Tomou Vadinho nome completo da candidata e os demais dados necessários. Novamente Célia escreveu aquela fria literatura num pedaço de papel e sem esperanças: muitas vezes já o havia feito. Tantos pedidos e recomendações e nenhuma consequência. Por que aquele almofadinha enxerido, com um ar velhaco, de deboche, um pé-rapado certamente, por que logo ele iria lhe obter o emprego? Até o padre Barbosa lhe dera um cartão para o Director, e, se o padre nada conseguira, quando mais esse tal namorado de Flor; quem perdera prestígio para esse tipo achar? Boa bisca não era ele, via-se na cara tresnoitada. Célia acumulara cepticismo e amargura a arrastar a perna cambaia pelas salas hostis da Directoria de Educação. A felicidade dos outros não a enternecia, nem mesmo a daqueles raros desejosos de ajudá-la, penalizados de sua sorte. Seu coração estava seco e árido e, ao rabiscar os nomes do pai e da mãe, a data de nascimento e o ano de formatura fazia-o certa de perder tempo e esforço, aquele biltre não ia tornar nenhuma providência, ela estava farta desses pinóias emproados: promessas fáceis e mais nada. Mas, que jeito? Dona Rozilda estava toda caída pelo gabola, doutor Waldomiro para cá doutor Waldomiro para lá, e ela, Célia, ia filar o jantar da velha fogueteira. Quanto ao sujeitinho, bastava olhar para a cara dele e logo se via qual o seu desiderato: comer os tampos de Flor e quebrar no beco, sumir num adeus e nunca mais.
Era Célia injusta com Vadinho, pois para servi-la fez o rapaz naquela noite o roteiro completo das casas de jogo, numa dupla urucubaca: perdeu quanto tinha no bolso e não deparou com um só conhecido importante a quem expulsasse o pequeno drama da professora e pedisse por ela. Nem Giovanni Guimarães, nem Mirabeau Sampaio, nem seu xará Waldomiro Lins, nenhum deles apareceu, como se todas as suas relações influentes houvessem entrado em recesso, abandonando a roleta, o bacará, o grande e pequeno, a ronda, o vinte-e-um.
Demorou-se Vadinho noite afora, e a figura mais ilustre a aparecer foi Mirandão, com quem terminou indo cear um sarapatel de arromba em casa de Andreza, filha de Oxum – Zambeta, mirrada, e ainda por cima, com esse azar…
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