DONA
FLOR
E SEUS
DOIS
MARIDOS
Os dias iniciais desse namoro sem declaração formal e sem formal consentimento foram inesquecíveis. Todos os anos, no verão, na oportunidade das festas do bairro, costumava Flor passar uns dias com os tios, aos quais era muito afeiçoada. No mês de Fevereiro a Escola de Culinária não funcionava.
Vinha para a procissão do presente a Yemanjá, a dois de Fevereiro, quando os saveiros cortam as ondas carregados de flores e dádivas para dona Jonaína, mãe das águas, da tempestade, da pesca, da vida e da morte no mar. Ofertava-lhe um pente, um frasco de perfume, um anel de fantasia. Yemanjá habita no Rio Vermelho, seu peji ergue-se numa ponta de terra sobre o oceano.
Em companhia das moças do bairro, divertia-se em intenso e festivo programa: pela manhã banho de mar, passeios à tarde no farol da barra e em Amarelina, por vezes iam até Pituba; a organização e os ensaios da prancha de Carnaval – alegre trabalheira; piqueniques em Itapoã, em casa do doutor Natal, médico amigo do tio Porto, ou na lagoa do Abaeté, com violas e cantigas, batalhas de confete. À noite circulavam no Largo de Sant’Ana ou na Mariquita, por entre as barracas coloridas, quando não havia dança programada em residência de família amiga ou elas próprias não invadiam e ocupavam uma sala de visitas, improvisando um assustado.
A casa de Porto, florida de trepadeiras e acácias ficava na Ladeira do Papagaio e aos domingos, invariável, o tio saía com outro amante da pintura, residente no Largo, um senhor sergipano, acanhado como ele só, um certo José de Dome; saíam a desenhar casarios e paisagens. Uns dois anos antes, quando da partida de Rosália e António Morais para o Rio, Flor, sozinha e triste, chegara a sentir uma vaga inclinação pelo pintor, já homem maduro, dos seus quarenta anos se bem apresentasse menos, caboclo rijo e seco. Propusera-lhe ele um dia, vencendo a extrema timidez, pintara-lhe o retrato e o iniciara numa tela de ocres e amarelos lancinantes onde a cor mate de Flor ressaltava transfigurada.
“Negócio de maluco, um disparate, aliás esse fulano é leso” definiu dona Rozilda, que em matéria de arte não ia além do cromo das folhinhas, ao ver aquela explosão de tinta e luz.
Nunca chegara José de Dome a concluir o retrato, no entanto. Não houvera tempo, Flor retornara à Ladeira do Alvo e, se bem prometesse vir posar aos domingos, jamais o fez; tampouco ela entendia a pintura de sergipano. Simpatizava, sim, com o seu sorriso e sua solidão. Mas aquele sentimento nem chegara a ser namoro, pois não se pode chamar namoro aos longos silêncios e aos breves sorrisos das horas de pose. Não passa de efémera inclinação a durar apenas os dias de veraneio incapaz sequer de romper o acanhamento do artista.
Ao voltar ao Rio Vermelho, Flor reencontrou o amigo do tio com a mesma cordialidade, mas fora quebrado o encanto daquelas férias anteriores, era como se nada houvesse acontecido entre eles. Quanto ao retrato por acabar está até hoje na parede do atelier do pintor, no terceiro andar de um velho sobradão, na esquina do Largo de Sant’Ana; quem quiser pode vê-lo, é só tomar coragem e subir as carunchosas escadas.
Tão diferente com Vadinho… Como se irrefreável avalanche a arrastasse, ele a dominou e decidiu de seu destino. Flor compreendeu, ao fim daqueles perfeitos e rápidos dias do Rio Vermelho, não lhe ser mais possível viver sem a graça, a alegria, a louca presença do rapaz. Fez quanto ele lhe pediu: nas festinhas não dançou com nenhum outro, de mãos dadas com ele por entre a quermesse do Largo, desceu à praia escura para no negrume da noite melhor se beijarem, como ele sugeriu; sentindo um arrepio a mão de carícias por debaixo do seu vestido, acendendo-lhe as coxas e as ancas.
Dona Rozilda, quem jamais poderia imaginá-la assim democrática, de tamanha liberalidade?
Fechava os olhos aos evidentes abusos daquele namoro tão sem controle e desassuntado, a ponto de tia Lita, pouco afeita a carrancismos, no entanto, estranhar e advertir:
- Você não acha, Rozilda, que Flor está dando corda demais a esse moço?
Saem juntos por toda a parte como se fossem noivos, nem parece que se conheceram no outro dia…
FLOR
E SEUS
DOIS
MARIDOS
EPISÓDIO Nº 48
Os dias iniciais desse namoro sem declaração formal e sem formal consentimento foram inesquecíveis. Todos os anos, no verão, na oportunidade das festas do bairro, costumava Flor passar uns dias com os tios, aos quais era muito afeiçoada. No mês de Fevereiro a Escola de Culinária não funcionava.
Vinha para a procissão do presente a Yemanjá, a dois de Fevereiro, quando os saveiros cortam as ondas carregados de flores e dádivas para dona Jonaína, mãe das águas, da tempestade, da pesca, da vida e da morte no mar. Ofertava-lhe um pente, um frasco de perfume, um anel de fantasia. Yemanjá habita no Rio Vermelho, seu peji ergue-se numa ponta de terra sobre o oceano.
Em companhia das moças do bairro, divertia-se em intenso e festivo programa: pela manhã banho de mar, passeios à tarde no farol da barra e em Amarelina, por vezes iam até Pituba; a organização e os ensaios da prancha de Carnaval – alegre trabalheira; piqueniques em Itapoã, em casa do doutor Natal, médico amigo do tio Porto, ou na lagoa do Abaeté, com violas e cantigas, batalhas de confete. À noite circulavam no Largo de Sant’Ana ou na Mariquita, por entre as barracas coloridas, quando não havia dança programada em residência de família amiga ou elas próprias não invadiam e ocupavam uma sala de visitas, improvisando um assustado.
A casa de Porto, florida de trepadeiras e acácias ficava na Ladeira do Papagaio e aos domingos, invariável, o tio saía com outro amante da pintura, residente no Largo, um senhor sergipano, acanhado como ele só, um certo José de Dome; saíam a desenhar casarios e paisagens. Uns dois anos antes, quando da partida de Rosália e António Morais para o Rio, Flor, sozinha e triste, chegara a sentir uma vaga inclinação pelo pintor, já homem maduro, dos seus quarenta anos se bem apresentasse menos, caboclo rijo e seco. Propusera-lhe ele um dia, vencendo a extrema timidez, pintara-lhe o retrato e o iniciara numa tela de ocres e amarelos lancinantes onde a cor mate de Flor ressaltava transfigurada.
“Negócio de maluco, um disparate, aliás esse fulano é leso” definiu dona Rozilda, que em matéria de arte não ia além do cromo das folhinhas, ao ver aquela explosão de tinta e luz.
Nunca chegara José de Dome a concluir o retrato, no entanto. Não houvera tempo, Flor retornara à Ladeira do Alvo e, se bem prometesse vir posar aos domingos, jamais o fez; tampouco ela entendia a pintura de sergipano. Simpatizava, sim, com o seu sorriso e sua solidão. Mas aquele sentimento nem chegara a ser namoro, pois não se pode chamar namoro aos longos silêncios e aos breves sorrisos das horas de pose. Não passa de efémera inclinação a durar apenas os dias de veraneio incapaz sequer de romper o acanhamento do artista.
Ao voltar ao Rio Vermelho, Flor reencontrou o amigo do tio com a mesma cordialidade, mas fora quebrado o encanto daquelas férias anteriores, era como se nada houvesse acontecido entre eles. Quanto ao retrato por acabar está até hoje na parede do atelier do pintor, no terceiro andar de um velho sobradão, na esquina do Largo de Sant’Ana; quem quiser pode vê-lo, é só tomar coragem e subir as carunchosas escadas.
Tão diferente com Vadinho… Como se irrefreável avalanche a arrastasse, ele a dominou e decidiu de seu destino. Flor compreendeu, ao fim daqueles perfeitos e rápidos dias do Rio Vermelho, não lhe ser mais possível viver sem a graça, a alegria, a louca presença do rapaz. Fez quanto ele lhe pediu: nas festinhas não dançou com nenhum outro, de mãos dadas com ele por entre a quermesse do Largo, desceu à praia escura para no negrume da noite melhor se beijarem, como ele sugeriu; sentindo um arrepio a mão de carícias por debaixo do seu vestido, acendendo-lhe as coxas e as ancas.
Dona Rozilda, quem jamais poderia imaginá-la assim democrática, de tamanha liberalidade?
Fechava os olhos aos evidentes abusos daquele namoro tão sem controle e desassuntado, a ponto de tia Lita, pouco afeita a carrancismos, no entanto, estranhar e advertir:
- Você não acha, Rozilda, que Flor está dando corda demais a esse moço?
Saem juntos por toda a parte como se fossem noivos, nem parece que se conheceram no outro dia…
0 Comments:
Enviar um comentário
<< Home