segunda-feira, fevereiro 22, 2010


DONA
FLOR
E SEUS
DOIS
MARIDOS


EPISÓDIO Nº 51



Com o pai teve Vadinho breve encontro no qual se recusou a volver ao internato, recusando-lhe em troca o salafrário Guimarães a bênção e qualquer ajuda financeira, “não tinha recursos para sustentar desordeiros”. Com a riqueza da mulher ficara somítico e moralista. Aliás, nesta altura da vida, quando seu nome era citado nas colunas dos jornais, passara a conceber sérias dúvidas a respeito da paternidade de Vadinho. Seria mesmo seu filho? A falecida Valdete acusava-o, entre beijos, de tê-la deflorado e engravidado. Mas será documento a merecer crédito a palavra de uma doméstica?

Jamais conhecera outro homem, além dele, segundo depunham suas amigas chorosas, junto ao corpo. Mas a palavra dessas outras amas, sem eira nem beira, pode constituir prova seja lá do que for? Tudo aquilo sucedera há tanto tempo, confusas memórias da juventude, numa adolescência falha de responsabilidade, insensata. Talvez fosse seu filho, talvez não o fosse, quem poderia vir de público prová-lo, onde estava a certeza? Certeza mesmo era ser Vadinho filho-da-puta e um filho-da-puta dos piores: ainda menino e “querendo estuprar honesta senhora, bondosa mãe de um colega, em cujo lar fora recebido como filho…” Esse pai de Vadinho era um Guimarães da “banda podre” como o classificara Chimbo, não lhe coubera o ímpeto e a generosidade da família.

Desde então não mais provara Vadinho o perfume de um sentimento familiar, não mais tivera um interesse complexo e profundo. Sua vida sentimental, numerosa e diversa, pois as múltiplas amantes variavam na idade, na posição social e na cor, decorrera em grande parte nos castelos e cabarés, em xodós com raparigas, amigações, além de umas poucas aventuras com mulheres casadas; sem que nenhum desses laços tivesse a força do amor. Nunca um enrabichamento o fez sentir a vida plena e luminosa, jamais uma ausência feminina, uma briga, o término de um caso, o tornou gris e suicida. Partia para outro corpo de mulher como mudava de mesa na sala de jogo quando o dezassete, seu número, fazia-lhe falseta.

O encontro com Flor, na festa do Major, veio reacender-lhe de súbito aquela necessidade antiga de lar, de vida de família, mesa posta, cama de lençóis limpos. Ele não tinha sequer endereço estável, mudando de pensão barata a cada mês por falta de pagamento. Como esbanjar dinheiro em aluguel quando sobrava tão pouco para o jogo?

Flor trazia um novo sabor à sua vida, uma quietude, uma placidez, um gosto de ternuras familiares:

- Gosto de você porque você é mansa como um bichinho, meu bem…

De tal forma seduzido por ela, a ponto de suportar-lhe a mãe, velha mais terrível e paulificante, ridícula e desfrutável. Amava a singeleza da moça, sua mansidão, sua alegria sossegada, e sua compostura. Lutando diariamente para derrubar-lhe a resistência e romper-lhe a castidade, sentia-se, no entanto, contente e orgulhoso com ela ser assim recatada e séria. Porque só a ele competia domar esse recato, reduzir a prazer aquela pudicícia. Os amigos de Vadinho descobriam um brilho nos seus olhos, acontecendo-lhe ficar parado ante a roleta, esquecido de depositar a ficha, sonhador.

E os íntimos, como Mirandão, já não se surpreenderam quando, pelo Carnaval, o viram integrando a prancha dos Alegres Gazeteiros, prancha organizada pelas famílias do rio Vermelho, decoração do tio Porto, moças e rapazes fantasiados de vendedores de jornais, mercando o Diário da Bahia, A Tarde, Diário de Notícias e o Imparcial. Um Carnaval de confete e mamãe-sacode de serpentina e canções, onde lança-perfume era para consumir nas namoradas e não para aspirar-se, um Carnaval sem cachaça. O oposto dos carnavais de Vadinho, que emendavam do sábado à terça-feira num porre só. Integrando blocos de mascarados, às voltas com as raparigas, a sambar no meio da rua, a bebida à la vontê. Caindo de bêbado nos fins das noites num fovoco qualquer da zona; assim nos quatro dias.

“Olhe quem vai ali, naquela prancha, de pandeiro na mão, é Vadinho saindo em prancha, quem diria!”, admiravam-se passantes habituados a vê-lo em deboche completo na folia do Carnaval. Lá estava Vadinho, ao lado de Flor, a cobri-la de confetes e ternura.

Nada disso o impediu, no entanto, de chafurdar na mais baixa gandaia, de ingerir uma cachaça absurda, após ter-se despedido de Flor, à meia-noite. Saiu directo para o Tabaris, o Meia-Luz, o Flozô. Na segunda-feira pretextou trabalho urgente em Palácio, foi-se às dez da noite, não podia chegar tarde ao grande baile da Gafieira do Pinguelo onde Andreza e outras reais crioulas fantasiavam-se de damas de corte de Maria Antonieta, gastando cetins e veludos, alvas cabeleiras de algodão.

Nem mesmo no momento de paixão mais alta, Vadinho imaginou sequer mudar sua vida, modificá-la, arranjar novos hábitos, regenerar-se. Mirandão ameaçava fazê-lo de quando em vez:

- Seu mano, vou me regenerar… De amanhã em diante…

Vadinho jamais falou nisso. Apaixonado por Flor, projectando casar-se com ela, mas nem assim disposto a fugir a seus solenes compromissos, a seu quotidiano do jogo e malandragem, de bebedeiras e arruaças, de casinos e castelos.

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