quarta-feira, março 24, 2010


COMPANHEIROS
E AMIGOS





Pela terceira vez consecutiva participei, no último sábado, no encontro anual da nossa Compª. de Caç. 388 e é o meu testemunho dessa reunião que mais uma vez aqui vos trago.

Como de costume, bebemos e comemos, trocámos abraços e cumprimentos, tirámos fotografias para juntarmos às outras que já lá temos no álbum e, em grupo, unidos, cantámos o hino do nosso Batalhão, sem dúvida o momento alto do nosso encontro. Os que conheciam a letra, a música e têm voz fizeram-se ouvir muito afinados, os outros, irmanados no mesmo espírito, escutaram em silêncio e respeitosamente como, de forma inevitável, acontece sempre nestas coisas dos hinos…ou acontecia.

Naqueles momentos, enquanto as vozes se fazem ouvir, sentimos como uma estranha corrente a ligar os nossos corpos. Não eram trinta e duas pessoas: era um corpo, um colectivo, irmanado por sentimentos radicados na mais importante das experiências das nossas vidas, passadas em comum, há muitos anos, em terras desconhecidas, lá em África, muito longe do nosso país natal.

É preciso recordar, fazer reviver essas lembranças é como remexer no ouro, de tão diferente que foi é como se tivesse sido outra vida. Tê-la vivido todos juntos constitui um património que é nosso, uma riqueza cujo valor sobressai nas notas do hino que cantámos.

Enquanto ele se fez ouvir, como por magia, recuamos no tempo e sem pensar, sentindo apenas, voamos até ao passado, ao interior de nós próprios… por momentos não sabemos bem onde estamos, se é que estamos, até que o hino acaba e o feitiço se desmancha.

Apenas nos faltou preencher uma lacuna e isso representou um falha de todos nós mas vamos preenchê-la para o ano com a colaboração do nosso estimável, incansável e competente Bento e que é, por direito próprio, o “dono do microfone”.

Quando ele entender melhor, antes ou depois da refeição, antes ou depois do hino, pedir-nos-á um minuto de silêncio durante o qual faremos um exercício colectivo trazendo ao nosso pensamento aqueles que embarcaram connosco e já não desembarcaram, vítimas daquela aventura, e também os outros, que tendo desembarcado, já não estão entre nós.

Depois de mortas as pessoas só podem viver na imaginação dos vivos e relativamente àqueles que lá ficaram nós temos especiais responsabilidades. Foram eles… poderiam ter sido alguns de nós. Quem sabe se não foram no nosso lugar? Dar-lhes vida na nossa imaginação, cada um recordando os que lhe eram mais próximos, é uma obrigação nossa, um direito que lhes assiste.

Eu sei que sempre o poderemos fazer em qualquer altura ou lugar, é evidente, mas eu refiro-me a um exercício colectivo num momento escolhido, especial, que nos leve a todos nós até eles. É diferente, tão diferente como um de nós cantar o hino sozinho lá em casa.

Vai-se para a guerra com um grupo de desconhecidos, vem-se de lá com um grupo de irmãos… avindos, desavindos, mais chegados ou afastados, mas irmãos… é um pouco isto que todos nós sentimos e nos leva a sair destes encontros reconfortados, felizes… estivemos com essa nossa outra família.

Lembram-se do filme “O Resgate do Soldado Ryan” de 1998, do Steven Spielberg com o Tom Hanks?

Nesse filme, ele conta a história da decisão tomada pelo Exército americano, durante a 2ª G.G., de fazer regressar ao solo pátrio um soldado, único sobrevivente de um grupo de irmãos já falecidos em combate para não correrem o risco de privarem os pais de todos os seus filhos. Encontrado, finalmente, o nosso homem recusa-se a regressar por entender que não podia abandonar os seus colegas de luta que eram agora os seus novos irmãos.

Ressalvadas todas as diferenças entre a 2ª G.G. Mundial e a nossa guerra, uma clássica, o outra subversiva, esta, que menos de 20 depois, nos levou até Angola, tem o essencial comum a todas as situações de guerra: uma experiência de vida em que um grupo de homens, unidos pela farda que envergam, procuram sobreviver em situações limite criando, entre eles, laços que se assemelham a uma segunda família e às vezes até mais forte, como no caso do soldado Ryan.

Diferentes em cada guerra serão as “trincheiras”, os cenários, as motivações, os contextos históricos, mas, em todas elas, os mesmos laços de irmandade entre os soldados que as protagonizam… esses, matêem-se.

Uma presença, uma ausência e uma referência:

A Presença:

- Encontrei-me, pela primeira vez, depois de 47 anos, com o nosso primeiro Comandante de Companhia, o “120”, que este ano compareceu ao almoço. Dos três que tivemos, pelo menos para mim e julgo que para a maior parte de nós, foi o Capitão que mais marcou… “No mato não sou capitão sou o 120! Se vocês me chamam capitão eles matam-me!”

…Inevitavelmente, ficou o “120”. Mas eu recordo-o também, perfeitamente, quando ele nos foi esperar ao Vera Cruz, no dia da nossa chegada, salvo erro, a 9 de Novembro de 1963.

Trajava a rigor um camuflado, não daqueles novinhos em folha saídos do Casão a cheirarem a maçarico mas dos outros, dos que cheiravam à guerra… Na cabeça, o inevitável quico, à cintura a faca de mato e duas granadas ofensivas, uma de cada lado, as calças apertavam no tornozelo onde começavam as botas da farda… e não é que tudo aquilo lhe ia a matar? Tivesse o Silvestre Stalone já inventado a figura do Rambo e esse, sim, seria a alcunha que lhe teria posto…com o devido respeito.

Depois de uma pequenina e inicial reacção, rapidamente ultrapassada, gostei sinceramente de o ver: impecável nos seus oitenta anos, desempenado, boa presença, fiel ao seu estilo que não perdeu.

A Presença:

- A presença, é de uma senhora, a única que não faltando aos nossos almoços anuais, partilhou igualmente da nossa aventura de Angola, no Cazombo, terra dos Luenas, no Alto Zambeze: a esposa do nosso Alferes Médico, Dr. Dória Nóbrega, Maria Irene, que por direito próprio também faz parte da irmandade. Bem-haja, todos os anos lá estaremos à espera de a encontrar.

A Ausência:

- A ausência foi do Quim “médico” por motivos de doença. “Força, Quim, não te esqueças que passei uma noite inteira à beira da tua cama, na fazenda Rainha Santa, a “vigiar” o teu vírus do paludismo… agora não podes faltar”.

A Referência:

- A referência é para o “Petrac” que muito recentemente ficou viúvo: “Força, amigo, no próximo ano quero ver-te dentro daquele teu sobretudo cor pele de camelo com o bonezinho a condizer... ficas uma beleza”.

Amigos e companheiros, chega por este ano. Em 2011 lá estaremos todos novamente… sobrevivemos à guerra, agora, é sobreviver à vida em cada ano que passa.

Joaquim Luís de Vasconcelos Paula de Matos

(Alf. Mil. de Inf. na disponibilidade dos seus quase 71 anos ou, se preferirem, acabadinho de descer convosco as escadas do Vera Cruz, atracado ao Cais da Rocha de Conde de Óbidos, saco às
costas, … estão a fazer por estes dias 45 anos…)

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