terça-feira, março 09, 2010


DONA


FLOR


E SEUS


DOIS


MARIDOS


EPISÓDIO Nº 63



Sete anos decorreram entre aquelas primeiras lágrimas choradas por dona Flor na noite de núpcias e as da aflita manhã de domingo gordo quando Vadinho caiu sem vida em meio de um samba de roda, entre fantasias e máscaras. E, como bem disse dona Gisa – senhora de bem dizer as coisas, adrede e com exacto a propósito – ao ver o corpo do moço estendido nas pedras do Largo Dois de Julho, já de todo e para sempre morto; a esposa chorara naqueles sete anos por seus insignificantes pecados e pelos do marido – pesada carga de culpas e malfeitos – e ainda sobravam lágrimas. Lágrimas de vergonha e sofrimento, de dor e humilhação.

Derramadas sobretudo à noite. Noites ermas da presença de Vadinho, noites insones de espera, longas de passar como se a aurora como se a aurora recuasse para os limites do inferno. Por vezes a chuva cantava seu acalanto nos telhados, o frio a pedir corpo de homem, quentura de um peito com mata de pêlos, abrigo em braços fortes. Dona Flor em vigília, impossível adormecer; o desejo de tê-lo a seu lado era uma ferida exposta. Estremecia em arrepios, num desconforto de tristeza, naquela cama cheia apenas de ânsia e abandono.

Com Vadinho presente – ah!, com Vadinho presente nem frio nem tristeza. Dela vinha um calor alegre a subir das pernas para o rosto de dona Flor e a noite se abria em júbilo. Dona Flor sentia-se agasalhada e festiva, um pouco irresponsável como se houvesse bebido um copo de vinho ou um cálice de licor. A presença nocturna de Vadinho a embriagava, vinho de buquê inebriante, como resistir à sedução de sua boca de palavras e língua? Eram noites de exaltado ímpeto, feéricas noites de aleluia.

Escassas, porém, essas noites em que o tinha sem sair após o jantar, estirado no sofá, a cabeça em seu colo, a ouvir o rádio, a contar-lhe histórias, a mão indiscreta a cutucá-la, a bulir com ela, tentando-a; e logo cedo no leito de ferro, na longa cavalgada. Aconteciam de raro em raro. Quando ele, num enjoo repentino e imprevisível, abandonava por três, quatro dias, por toda uma semana, a estroinice, a baderna, a cachaça e o jogo e permanecia em casa.

Dormindo a maior parte do tempo, futucando nos armários, abusando as alunas, exigindo dona Flor para vadiar a qualquer hora, mesmo nas mais impróprias e indiscretas. Dias curtos e cheios esses, com o doidivanas a remexer tudo, o riso trêfego a ressoar pelo corredor, na janela em prosa com os vizinhos, ouvindo ralhos de dona norma, em longos bolodórios com dona Gisa, enchendo de movimento e alegria o lar e a rua. Contadas a dedo essas noites inteiras de vertigem e euforia, de riso incontido e cócegas, cafunés, cariciosas palavras e o baque dos corpos desatados no leito de ferro.

“Meu doce de coco, minha flor de manjericão, sal de minha vida, minha quirica pelada, tua xoxota é meu favo de mel”, que ele dizia, ai as coisas que ele dizia, nem te conto seu mano!

Repetidas com infindável rosário as noites de espera, essas sim. Dona Flor dormia sobressaltada, acordando ao menor ruído; ou de todo sem
dormir, encostada em ira e dor nos travesseiros até adivinhar-lhe o passo ainda distante e ouvir a chave na fechadura. Pela maneira como a porta era aberta ela sabia da altura da cachaça e do resultado do jogo. Fechava os olhos a fingir-se adormecida.

Por vezes ele chegava de madrugada e ela o recolhia em sua ternura, agasalhava seu sono tardio. O rosto fatigado, um sorriso vencido, ele se enrolava como um novelo na concha do seu corpo. Dona Flor engolia as lágrimas para Vadinho não se dar conta do choro e da tristeza: ele já tinha muito com que se amofinar, os nervos rotos na emoção da batalha contra a má sorte. Quase sempre bebido, várias vezes bêbado, adormecia de imediato, não sem lhe correr a mão numa
carícia e murmurar:”Minha negra pelada, hoje me enterrei mas amanhã tiro a forra…”

Site Meter