sábado, março 13, 2010


DONA
FLOR
E SEUS
DOIS
MARIDOS

EPISÓDIO Nº 67

Só faltava encontrar mimo de valia, de encher o olho, não aquelas bugigangas de mascate. Foram encontrá-lo finalmente na Ladeira de São Miguel, no buduar – como dizia pernóstico Mirandão – de Madame Claudette, acabada cortesã sobrevivendo à custa de mínima clientela de colegiais, que a frequentavam devido à sua nacionalidade francesa e a propalados requintes, tudo muito parisiense e a baixo preço.

Colar de turquesas de um azul realmente tão famoso a ponto de Vadinho e Mirandão sentirem o impacto dessa beleza ilustre e seu fascínio. Todo em ouro trabalhado; a velha marafona o apertava entre os dedos como a defendê-lo. Era uma jóia de família, segredava, ela a trouxera da Europa, fora usada por sua mãe e por sua avó, tinha um duplo valor. Só mesmo muito dinheiro podia levá-la a desfazer-se daquela preciosidade, recordação de um mundo perdido na Lorraine e na infância. Só por muito, muito dinheiro; “le petit Vadinho, le pauvre” nunca tocara quantia tão grande e, se um dia a obtivesse, não a iria gastar em adorno de mulher. Quando fizera Vadinho caso de dinheiro, Madame? Mesmo limpo, no miserê, a nenhum, sem tostão furado, nem assim dava valor ao dinheiro, e se o buscava em insensato afã era para jogá-lo na roleta. Arrancava num ímpeto as cédulas dos bolsos cheios.

Quase ficam vazios: os olhinhos de Madame Claudette se acendiam de cobiça atrás da máscara de pó de arroz e creme, aquela múmia fremia à vista de notas de cem e de duzentos.

O táxi do cigano o deixou à porta de casa às onze e quarenta, antes da meia-noite, como ele queria. Dona Flor apenas teve tempo de fechar os olhos e ressonar de leve e já Vadinho estava no quarto, arrancando o lençol a esconder o corpo da esposa, pondo-lhe fulgurações de turquesas entre os seios túmidos, a rir numa gaitada:

- E tu não queria me emprestar dinheiro, sinhá tola… – esparzia as cédulas pela cama, ainda lhe sobrara mais de dois contos de réis.

Como dizer “torvo destino” para quem era assim alegre jogador a sorrir na sorte e no azar, cheio de alegria de viver?

Torvo destino talvez na opinião de dona Flor, de seu ponto de vista, de seu posto de observação ou, para melhor esclarecer, de seu posto de espera. Torvo para dona Flor no leito a esperar.

A esperá-lo durante sete anos, uma vida. Dona Flor chorou muitas lágrimas naqueles anos, vadiou também muita vadiação; os doces momentos de ternura e posse buscando compensar as horas amargas de ausência e humilhação.

Um dia, dona Gisa, com suas fumaças de psicologia, psicanálise, psicografia e outras invencionices norte-americanas, explicou-lhe ser ela, dona Flor, casada com um excepcional – não excepcional no sentido em que dona Flor usava o termo, como sinónimo de grande, de maior, de melhor de
todos, nada disso.

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