DONA
FLOR
E SEUS
DOIS
MARIDOS
Excepcional significando diferente, fora do normal, alguém que não cabia nas medidas habituais nem se podia prender nos limites de um quotidiano medíocre e monótono. Era dona Flor capaz de entendê-lo e de ser feliz com ele? Tretas de dona Gisa, boa amiga sem dúvida, porém uma letrada dos seiscentos demónios, a cabeça cheia de caraminholas e a língua de aperreio.
Dona Flor desejava ser como todo o mundo, seu marido como os demais maridos. Não tinha ele um emprego na Municipalidade obtido por seu parente rico, doutor Aírton Guimarães, apelidado Chimbo? Ela o queria vindo do emprego para casa, os jornais sob o braço, um embrulho de biscoitos ou cocadas de abarás e acarajés. Jantando na hora exacta como os outros, saindo em certas noites com ela, a passeio, de braço dado, gozando a brisa e a lua. Amoroso, no leito a vadiar. A vadiar antes de dormir, ainda cedo, e nos dias certos de vadiação.
Como era é que não podia ser: Vadinho sem hora de chegar, dormindo frequentemente na rua, com certeza no leito das vagabundas, de antigos e renovados xodós; querendo vadiar e vadiando a horas tardias e as mais absurdas, em qualquer dia sem determinação, sem relógio nem almanaque. Não havia horário nem sistema, tão pouco hábito estabelecido ou tácita convenção, um costume dos dois, nada. Era aquela anarquia sem cabimento, ele na rua todas as noites sem lhe dar notícia, ela no leito de ferro roendo a dor de cotovelo, aguda dor de corno e uma dor no peito, uma aflição. Por que todas as outras mulheres casadas faziam jus aos seus maridos, só ela não? Por que não era Vadinho como todos os demais, com a vida regulada e em ordem, sem os sobressaltos, os fuxicos, a infindável espera? Por quê?
Tudo aquilo – a espera, o jogo, a cachaça, as noites fora de casa, os gritos a violência, a vilania – tornou-se tudo um hábito com o passar do tempo, mas dona Flor ainda não se acostumara inteiramente e morreria sem se acostumar.
Aliás, quem morreu foi ele, Vadinho, no Carnaval. Daí por diante, ah!, daí por diante o desejo já não teve sequer direito à espera, à expectativa, à ânsia. A ausência de Vadinho adquira outra dimensão. Também o sofrimento, outro era o seu peso. Não mais adiantava a dona Flor ficar de ouvidos atentos a cada ruído na calçada, o coração sôfrego a latir. Agora sem espera e sem esperança, de nada servia atentar à cadência dos passos, dos passos dos bêbados sobretudo, ao barulho subtil da chave na fechadura, ao som de uma canção perdida, de uma toada na distância.
Sim, de uma toada na distância. Porque houvera noites, durante aqueles sete anos de casamento e espera, em que Vadinho veio acordá-la em serenata, com violão e cavaquinho, violino e flauta, trompete e bandolim, a repetir aquela outra inesquecível serenata da Ladeira do Alvo, quando ela acabara de saber da verdadeira condição de seu amor: pobre, sem vintém, funcionário chinfrim, picareta e facadista, cachaceiro, libertino e jogador.
FLOR
E SEUS
DOIS
MARIDOS
EPISÓDIO Nº 68
Excepcional significando diferente, fora do normal, alguém que não cabia nas medidas habituais nem se podia prender nos limites de um quotidiano medíocre e monótono. Era dona Flor capaz de entendê-lo e de ser feliz com ele? Tretas de dona Gisa, boa amiga sem dúvida, porém uma letrada dos seiscentos demónios, a cabeça cheia de caraminholas e a língua de aperreio.
Dona Flor desejava ser como todo o mundo, seu marido como os demais maridos. Não tinha ele um emprego na Municipalidade obtido por seu parente rico, doutor Aírton Guimarães, apelidado Chimbo? Ela o queria vindo do emprego para casa, os jornais sob o braço, um embrulho de biscoitos ou cocadas de abarás e acarajés. Jantando na hora exacta como os outros, saindo em certas noites com ela, a passeio, de braço dado, gozando a brisa e a lua. Amoroso, no leito a vadiar. A vadiar antes de dormir, ainda cedo, e nos dias certos de vadiação.
Como era é que não podia ser: Vadinho sem hora de chegar, dormindo frequentemente na rua, com certeza no leito das vagabundas, de antigos e renovados xodós; querendo vadiar e vadiando a horas tardias e as mais absurdas, em qualquer dia sem determinação, sem relógio nem almanaque. Não havia horário nem sistema, tão pouco hábito estabelecido ou tácita convenção, um costume dos dois, nada. Era aquela anarquia sem cabimento, ele na rua todas as noites sem lhe dar notícia, ela no leito de ferro roendo a dor de cotovelo, aguda dor de corno e uma dor no peito, uma aflição. Por que todas as outras mulheres casadas faziam jus aos seus maridos, só ela não? Por que não era Vadinho como todos os demais, com a vida regulada e em ordem, sem os sobressaltos, os fuxicos, a infindável espera? Por quê?
Tudo aquilo – a espera, o jogo, a cachaça, as noites fora de casa, os gritos a violência, a vilania – tornou-se tudo um hábito com o passar do tempo, mas dona Flor ainda não se acostumara inteiramente e morreria sem se acostumar.
Aliás, quem morreu foi ele, Vadinho, no Carnaval. Daí por diante, ah!, daí por diante o desejo já não teve sequer direito à espera, à expectativa, à ânsia. A ausência de Vadinho adquira outra dimensão. Também o sofrimento, outro era o seu peso. Não mais adiantava a dona Flor ficar de ouvidos atentos a cada ruído na calçada, o coração sôfrego a latir. Agora sem espera e sem esperança, de nada servia atentar à cadência dos passos, dos passos dos bêbados sobretudo, ao barulho subtil da chave na fechadura, ao som de uma canção perdida, de uma toada na distância.
Sim, de uma toada na distância. Porque houvera noites, durante aqueles sete anos de casamento e espera, em que Vadinho veio acordá-la em serenata, com violão e cavaquinho, violino e flauta, trompete e bandolim, a repetir aquela outra inesquecível serenata da Ladeira do Alvo, quando ela acabara de saber da verdadeira condição de seu amor: pobre, sem vintém, funcionário chinfrim, picareta e facadista, cachaceiro, libertino e jogador.
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