quinta-feira, março 18, 2010


DONA
FLOR
E SEUS
DOIS
MARIDOS

EPISÓDIO Nº 71




Dona Flor não conseguira esclarecer jamais se Vadinho o desejava ou não a esse filho. O receio do hospital e do bisturi teria impedido uma conversa mais franca, teria contido dona Flor em perguntas mais ou menos formais? Ela própria não sabia. Que por várias vezes o interrogara, era certo:

- Tu não sente falta de um filho?

Talvez porque Vadinho a soubesse estéril e temerosa da operação, talvez por isso escondesse a sua vontade de uma criança em travessuras na casa, menina de loiras melenas onduladas como as dele, menino de negros cabelos e de pele cobreada como os dela. Uma vez, ouvindo-o enaltecer o encanto de um corneta gordo e rosado, um bitelo, prémio de robustez infantil a exibir-se no cromo de uma folhinha de ano, dispôs-se ela a enfrentar o assunto perturbador:

- Se você tem mesmo vontade de ter um filho, eu arrisco a operação. Doutor Jair disse que é possível que dê certo. Só não pode garantir…

Ele escutava como distante, meio perdido num sonho, e não respondia logo, levando-a a altear a voz quase com raiva, para arrancá-lo daquele devaneio:

- Se não der certo, paciência… Pelo menos ninguém pode dizer que tu queria um filho e eu não fiz tudo para ter… Ponho o medo de lado, é só você dizer – as últimas palavras saíam molhadas em lágrimas, mastigadas em soluços. Eis que ele nunca suportava vê-la chorar: acariciava-lhe a face de mágoa, sorria para alegrá-lo:

- Tola, tola… Que mania é essa de querer bulir na bichochota? Deixa tua quiriquinha em paz, meu bem, não vou deixar que você mexa na peladinha pra de repente pra de repente ela ficar toda frouxa ou torta por dentro… Deixa para lá essa história de filho…

E como se quisesse apagar a conversa, envolvia-a nos braços, arrastando-a para o quarto, para a vadiação sem finalmente lhe dizer se ansiava ou não por esse filho que ela não podia lhe dar, esse filho tão fácil de fazer noutra qualquer. Com a intempestiva posse, destruía o tempo de perguntas e respostas, embaciava a presença da inexistente criança erguida entre eles, até desvanecê-la por completo.

Gostar de meninos, ah!, como ele gostava… E a garotada o preferia a qualquer brinquedo, proclamando-lhe o nome, correndo para ele. Junto às crianças, Vadinho era seu igual, como se tivesse a sua mesma idade e infinita paciência. Mirandão lhes dera de afilhado, a ele e a dona Flor, o mais moço dos seus quatro moleques, o qual, desde pequenino, era louco pelo padrinho: apenas o via e escancarava a boca enorme, de sapo, acenando com as mãos, a arrancar-se dos braços da mãe para os de Vadinho. Brincavam os dois durante horas, Vadinho a imitar urros de animais ferozes, a saltar feito um canguru, a rir feliz. Como não havia de desejar um filho quem era assim doido por crianças? Não o confessava jamais, no entanto; talvez para não obrigá-la ao sacrifício incerto da intervenção cirúrgica.

Dona Flor, no leito de viúva, sente uma incómoda picada de remorso. Afinal podia ter tentado a operação apesar do visível pessimismo do casal de médicos. Deixara-se influenciar, quem sabe?, pela opinião de dona Gisa compartilhada por outros vizinhos e até pelos tios, uma dona Gisa muito culta a lhe expor teorias sobre hereditariedade para a consolar quando ela se acusava de estéril e de inútil. A própria tia Lita, tão bondosa, sempre cheia de desculpas para as andanças de Vadinho, lhe dissera por mais de uma vez:

- Há males que vêm para bem, minha filha. E se tu botasse no mundo um menino que saísse a Vadinho, assim, sem conserto? Tu já pensou? Deus sabe o que faz…

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