sábado, abril 03, 2010


DONA


FLOR


E SEUS


DOIS


MARIDOS

EPISÓDIO nº 84

Felizmente prevaleceu a alta civilidade do noivo sobre sua momentânea vicissitude, contornou a situação com jeito e diplomacia, não ia perder, por mero preconceito, aquela boca rica, aquele baú de ouro. Não bastara, porém, sua boa vontade, sua compreensiva colaboração, pois a dita cuja não queria dar por terminada a “inconsequente aventura”, considerando-se bem servida em matéria de cama. Que se danassem noivo e família, Noémia queria era fugir com Vadinho, arribar com ele. Vadinho é que não quis. Quando a gangorra caiu e a pagodeira se tornou assunto de maledicência pública, quando dona Flor, num daqueles seus arranques violentos e raros, exigiu uma decisão imediata, ou ela ou a outra, ele restituiu a moça ao noivo, esteta agora ainda mais esnobe e atraente, pois ao talento e à erudição somara os cornos, um noivo supimpa, outro assim era difícil de obter.

“Tudo xixica para passar o tempo”, lhe dissera Vadinho, quando, no extremo da aflição, dona Flor o enfrentou e exigiu se definisse de uma vez por todas.

Nunca pensara em ir-se com a tal Noémia, pura pabulagem da sapeca; além de puta, mentirosa de marca.

Que mais queriam as comadres? Dona Rozilda, dona Dinorá, aquela dona Enaide a sair dos seus cómodos do Xame- Xame, todas as demais, dezenas, centenas, e milhares de comadres no coro infame das lamentações e dos libelos, que mais queriam?

Por que recordar esse incidente como prova da infelicidade conjugal de dona Flor, prova que Vadinho era o pior dos maridos? Ao contrário, eis a prova mais completa do seu amor, de como ele a preferia a qualquer outra.

Não tinha a tal Noémia riqueza e elegância, palacete na Graça, talão de cheques, conta aberta no banco – Vadinho jogara alto naquele interregno – automóveis com chofer, curso de ginásio e rudimentos de francês, toda nos trinques e perfumes, sapatos e vestidos vindos do Rio? Com quem ficara ele, a quem preferira quando obrigado a escolher? De nada valera o talão de cheques nem o conforto do automóvel a levá-lo e a trazê-lo para cima e para baixo, nem os vestidos do Rio, os perfumes de Paris, o requinte das expressões: “mon cheri, mon petit cocô, merde, quelle merde, à locê de parler…” como se diz no francês da Bahia.

Vadinho não levara em conta nem o cabaço comido, nem as súplicas: “você me deve minha honra, nem as ameaças: “você vai ver, meu pai vai-lhe perseguir, lhe meter na cadeia”, nada o fizera sequer vacilar na hora da escolha. “Como tu pôde pensar num absurdo desses, que eu havia de te largar para ir viver com aquela porqueira…?” Pendurou a gabola nos chifres do noivo, foi para a cama com dona Flor, ah! que noite de pazes e perdão! “Tudo xixica para passar o tempo, permanente só tu, Flor, minha Flor de manjericão…”

Para as comadres, Vadinho fora o pior de quantos maridos ruins existiram no mundo, dona Flor a mais infeliz das esposas. Não lhe cabia direito a chorar, a lastimar-se, devia estar dando graças a Deus que a livrara em tempo de tamanha provação. Sem dúvida, dona Flor era a bondade em pessoa, e só mesmo dona Rozilda podia querer que ela se alegrasse, desse festa pela morte súbita de Vadinho.

Ruim como tudo, ele fora, no entanto, seu marido. Mas esse exagero de sentimentos, esse luto fechado, esse nojo mais além de toda a aparência, mais além de todo o cerimonial obrigatório nos ritos da viuvez, essa face parada e perdida, esses olhos voltados para dentro de si ou a fitarem
para
além do horizonte, a fitarem o infinito, o nada, tudo isso era inaceitável para as comadres.

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