sexta-feira, abril 09, 2010


DONA
FLOR
E SEUS
DOIS
MARIDOS


EPISÓDIO Nº 89





Os gritos cortavam a tarde, as comadres em alerta saíam à rua:

- É Vadinho tomando dinheiro de Flor, coitadinha…

- Cão mais tenebroso! Cão das trevas!

Vadinho partiu para dona Flor, os olhos negros, a cabeça vazia, o ódio a cobrir-lhe o entendimento, ódio de fazer o que estava fazendo. Tomando-a pelos pulsos, bradou-lhe:

- Larga essa merda!

Foi ela quem bateu primeiro: arrancando-se dele e não querendo deixar-se agarrar novamente, socou-lhe o peito com os punhos fechados, com a mão aberta atingiu-lhe o rosto. “Sua puta, tu me paga!, disse Vadinho, enquanto dona Flor gritava: “me deixa desgraçado, não me bata, me mate logo, é melhor”. Então ele a empurrou, ela caiu por cima de umas cadeiras, gritando: assassino, miserável, e ele a esbofeteou. Uma, duas, quatro bofetadas. O estalo das tapas levantou, na rua, o coro de revolta e lástima das comadres. Dona Norma abriu a porta, foi entrando sem pedir licença:

- Ou você para com isso ou eu chamo a polícia.

Vadinho nem parecia vê-la: lá estava ele com o dinheiro na mão e um ar perdido, o cabelo revolto, olhando num espanto para onde dona Flor jazia caída, a gemer baixinho, num choro manso. Dona Norma correu a ampará-la, Vadinho saiu porta fora, as notas apertadas entre os dedos. As vizinhas arredaram do passeio, era como se vissem o próprio demónio dos infernos.

Naquele mesmo instante , o táxi do Cigano freou junto à porta. Reconhecendo-o, Vadinho sorriu, porque aquela coincidência era mais uma prova da infalibilidade do palpite. Ia pela rua bem do seu quando tivera aquela certeza, mas uma certeza total e absoluta, sem perigo de engano ou urucubaca, certeza de que nessa tarde, nessa noite ele iria estourar todas as bancas de jogo da cidade, uma por uma, começando pelas roletas do Tabaris, terminando no antro escuso de Paranaguá Ventura. Uma certeza a crescer dentro dele, a dominá-lo, exigindo acção, obrigando-o a desdobrar-se em inútil peregrinação à cata de numerário, a partir por fim e a contragosto, em busca do dinheiro de dona Flor.

Ao esbofeteá-la, porém, ficara vazio até dessa certeza, fora o palpite, todo ele oco por dentro, sem saber o destino a dar àquele dinheiro, como se tudo houvesse sido inútil. Mas, na rua, ante o táxi do Cigano a surgir num milagre – pois Vadinho tinha pressa de iniciar ainda no turno vespertino a maratona do século – novamente se tranquilizou. Mais uma prova indiscutível de força do palpite, Vadinho sentia um calor nas mãos, uma urgência de partir. Agora apenas as mesas de roleta, a bolinha a girar, o crupiê, o 17, as paradas, o olhar nervoso de Mirandão, à sua esquerda como de hábito, as fichas, apenas o jogo existia para ele. Quis entrar no táxi mas o cigano saltara entre as vizinhas em alvoroço.
Um rastro de lágrimas no rosto do chofer, a voz espessa.

- Vadinho, meu irmãozinho, minha velha morreu, minha mãezinha…

Eu soube na rua, estou vindo agora de casa… Não vi ela morrer, diz que ela chamou por mim quando deu a dor…

De começo Vadinho nem prestara atenção às palavras do amigo, mas logo entendeu e apertou o
braço do Cigano. Que estava ele inventando, que história mais maluca?

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