quinta-feira, abril 15, 2010

DONA

FLOR

E SEUS

DOIS

MARIDOS

EPISÓDIO Nº 94


Envolta no corte de seda a escorregar pelos ombros, a cobri-la e a descobri-la, na alegria do retorno de Vadinho, desfolhada em risos e suspiros, dona Flor no leito come o marido a vadiar. Uma ponta de remorso a fazer mais doce aquele amor: ela o julgara mal, agressiva e injusta, duvidando dele, de “seu estudante mais lindo…”

Do que jamais dona Flor tomou conhecimento foi do esforço despendido por Mirandão para arrancar Vadinho dos braços de Josi, e pô-lo no navio, de regresso. Josi era o nome de guerra da lusa Josefina, corista da Companhia Portuguesa de Revista Beatriz Costa, perdida de paixão pelo moço baiano (e vice-versa). Conheceram-se quando a Embaixada Académica, tendo obtido entrada grátis para o Teatro República, foi aos bastidores após o espectáculo, cumprimentar Beatriz, suas artistas, suas coristas. Vadinho bateu o olho em Josi, ainda em trajes de varina, Josi mediu o falso estudante de alto a baixo, riram um para o outro, meia hora depois ceavam juntos iscas de bacalhau numa tasca das vizinhanças. Josi pagou a despesa, aquela primeira e todas as demais, até ele viajar. Com o tempo dividido entre a portuguesa e os casinos, Vadinho esqueceu por completo a data do embarque, hora de partida, regresso à Bahia. Mirandão teve de usar energia e sentimento:

- Me bastou ver minha comadre chorando uma vez, outra não quero ver… Se eu lá chegar sem você, o que é que minha comadre não vai dizer?

Disso nunca teve notícias dona Flor, como jamais soube da verdadeira origem do corte de seda francesa; não fora comprada no Rio e, sim, ganho a bordo, ao pocker, na véspera da chegada do navio a Salvador, quando os membros da caravana, já de todo sem dinheiro, arriscavam ao baralho os presentes e as lembranças cariocas. De um dos estudantes, Vadinho ganhara a seda, de outro um par de reluzentes sapatos de verniz e uma gravata borboleta de bolinhas azuis, muito em moda. Contra essas utilidades apostara magnífica foto de Josi, grande e colorida, com vidro e moldura doirada, onde a saloia se exibia numa cena de teatro, de calçola e porta seio, a perna erguida, perdição de cachopa! Numa letra trabalhosa ela escrevera: “A meu baianinho adorado, sua saudosa Josi”. Retrato finalmente adquirido, após longa barganha, por um outro companheiro de viagem jovem advogado desejoso de causar inveja aos amigos, com a narração e as provas de sensacionais conquistas metropolitanas. Foi assim que Josi financiou também o desembarque de Vadinho e concorreu para a alegria de dona Flor. Dona Flor a vadiar nos braços do marido, o corte de seda a escondê-la e a exibi-la, rolando afinal aos pés da cama.

Como viver sem ele? Asfixiada de ausência, debatendo-se na névoa, presa em correntes, como transpor os limites do desejo impossível? Como reencontrar a luz do sol, o calor do dia, a brisa matutina, a viração da tarde e as estrelas do céu, a face do povo? Não, sem ele não sabia viver e o recolhia então naquela bruma de tristeza, risos e emoções, em seu mundo sempre surpreendente.

Podiam as comadres recordar os maus momentos, as ácidas disputas, as calhordagens em matéria de dinheiro. As noites sem vir em casa, na bebedeira, quem sabe com mulheres, a loucura do jogo. Mas por que não abriam a boca de pragas para lembrar os dias exaltantes da estada de Sílvio Caldas na Bahia, quando dona Flor não tivera um minuto de descanso, tão pouco de tristeza?

Uma semana perfeita, nem um pormenor destoante, dona Flor guarda memória de cada detalhe, uma riqueza de alegria, uma festa. Por assim dizer, naquela semana ela foi uma espécie de rainha de todo o agitado bairro; do Cabeça ao Largo Dois de Julho, do Areal de Cima ao Areal de Baixo, do Sodré a Santa Tereza, da Preguiça ao Mirante dos Aflitos. Sua casa cheia, gente importante, mas importante de verdade, batendo-lhe à porta, pedindo licença para entrar, pois apesar de hóspede do Palace foi em casa de Vadinho que Sílvio se expandiu, recebeu e conversou, como
se
aquele fosse seu lar, dona Flor sua irmã mais moça .

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