sexta-feira, abril 16, 2010


DONA
FLOR
E SEUS
DOIS
MARIDOS


EPISÓDIO Nº 95


Sem falar nos conhecidos, como banqueiro Celestino, doutor Luís Henrique e o próprio dom Clemente Nigra, vieram à sua casa os maiores graúdos da Bahia, seja para o famoso almoço, seja em outros dias para cumprimentar o seresteiro, apertar a sua mão. Visitas capazes de por dona Rozilda em êxtase, no cúmulo da excitação, se ela não estivesse, felizmente, em Nazareth das Farinhas infernando a vida da nora que, segundo carta de Heitor, esperava por fim o primeiro filho.

Desse almoço guarda dona Flor não apenas a nítida recordação, como também recortes de notícias na imprensa. Dois jornalistas, conhecidos de Vadinho, aquele Giovanni Guimarães amigo de rir e contar lorotas, e um tal de negro Batista, femeeiro de prestigiosa reputação nos castelos, ambos garfos de respeito, deram conta do facto em suas gazetas.

Referiu-se Giovanni ao “incomparável ágape oferecido ao notável cantor pelo senhor Valdomiro Guimarães, zeloso funcionário municipal, e por sua excelentíssima esposa, Florípedes Paiva Guimarães, cujos méritos culinários se aliam à extrema bondade e à perfeita educação.” Enquanto o negro João Batista comovia-se com a quantidade de pratos: “… finíssimo e fartíssimo repasto, de sabor inexcedível, nele se exibiam todos os principais acepipes da cozinha baiana, além de doze qualidades de sobremesa, provando a grandeza da nossa culinária e a qualidade das mãos de fada da senhora Flor Guimarães, esposa do nosso assinante Waldomiro Guimarães, funcionário da Prefeitura dos mais dedicados e eficientes. Como se vê sentiram-se os dois glutões tão fartos e contentes a ponto de elogiarem não apenas a comida, o paladar de dona Flor, mas de promoverem Vadinho a dedicado, eficiente e zeloso funcionário, exagero um tanto forte.

Por que as comadres não recordam esse domingo do almoço? De tão cheia a casa, ninguém podia se mover, as mesas repletas de comida. Doutor Coqueijo, do Tribunal e músico nas horas vagas, a pronunciar discurso, gabando a arte de dona Flor; o poeta Hélio Simões, prometendo um soneto de louvação ao tempero da “encantadora dona da casa, guardiã das grandes tradições, zeladora do dendê e da pimenta”. No entanto as comadres estavam presentes, todas elas, num cochicheio, e a tudo assistiram; viram quando Sílvio tomou o violão e abriu o peito apaixonado e brasileiro. Juntara gente na porta da rua para ouvir; e às cinco das tarde ainda muitos convidados e outros quantos penetras bebiam cerveja e cachaça, reclamando novas canções ao menestrel, e ele a todos atendia.

O melhor de tudo, porém, superior aos elogios do corpo presente e em letra de forma nas folhas, aos discursos e versos; o que dona Flor colocava mesmo acima do canto de Sílvio Caldas, enchendo de paz e harmonia o céu e o mar, foi o comportamento de Vadinho. Não só arcara com todas as despesas do almoço (onde fora arranjar tanto dinheiro de uma só vez? Só a lábia de Vadinho seria capaz desse milagre…) como naquele dia não se embriagou, bebeu na justa medida, fez sala aos convivas, muito dono de casa. E quando o seresteiro empunhou o violão sem se fazer de rogado, querendo mesmo cantar e tocar em casa de seus amigos, quando agradeceu o almoço chamando dona Flor de “Florzinha, minha irmã…” Vadinho veio sentar-se ao lado da esposa e tomou-lhe a mão. As lágrimas subiram aos olhos de dona Flor, tanta emoção era demais.

Como viver sem ele? Sem ele, onde reencontrar a graça e a surpresa, como acostumar-se? Lera no vespertino a informação do desembarque do cantor para curta temporada no Palace e no Tabaris. Realizaria também, a convite da Prefeitura, uma serenata no Campo Grande, dando ao povo todo ocasião de vê-lo e ouvi-lo e de cantar com ele. Fora Vadinho esperá-lo ou não tivera conhecimento da notícia?


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