terça-feira, abril 20, 2010


DONA
FLOR
E SEUS
DOIS
MARIDOS

EPISÓDIO Nº 98


No leito de ferro um único pensamento esmaga dona Flor, atira-a contra o fundo de si mesma, em frangalhos: nunca mais o teria ali, em alvoroço, ao seu Vadinho; nunca mais. Aquela certeza a penetra e rompe; lâmina de veneno, rasga-lhe o peito e lhe apodrece o coração, apagando sua ânsia de sobrevivência, sua juventude ávida de subsistir. No leito de ferro, suicida, dona Flor. Apenas o desejo a sustenta e a memória persiste. Por que o espera, se é inútil? Porque o desejo se ergue numa labareda, fogo a queimar-lhe as entranhas, a sustentá-la viva? Se é inútil, se ele não voltará, despudorado amante a lhe arrancar anágua ou camisola, a calça de rendas, a expor sua nudez pelada, dizendo frases tão loucas que nem na lembrança ela se atreve a repeti-las, tão loucas e indecentes mas tão lindas, ai. Não virá tocar-lhe o colo, as ancas e o ventre, despertá-la e adormecê-la, temporal de anseios, furacão a conduzi-la cega, brisa de ternuras, zéfiro de suspiros e o desfalecer para novamente despertar. Ai, nunca mais! Só o desejo a sustenta, e a memória.

“Como uma alma penada pela casa húmida e soturna, um túmulo”. Cheiro de mofo nas paredes, nas telhas e no piso, um frio abandono à espera das aranhas e das teias. “Uma sepultura onde ela se enterrou com a lembrança de Vadinho”.

Dona Flor toda em negro, de nojo por dentro e por fora, apodrecida. Dona Norma sua amiga, veio e lhe disse:

- Assim não é possível, Flor. Não é possível. Vai completar um mês e você vive como uma alma penada, rondando dentro de casa. E sua casa que era um brinco está se enchendo de bolor; mais parece, Deus me perdoe, uma sepultura onde você se encerrou. Reaja, acabe com isso, alivie esse luto…

As alunas perdiam-se naquela atmosfera onde risos e piadas soavam a falso. Como manter o cordial quotidiano das aulas, a agradável sensação do passatempo, causa do maior sucesso da escola de Culinária Sabor e Arte, se a professora ria por compromisso e com esforço? Nos seus distantes tempos de aluna, dona Maga Paternostro, a milionária, numa pose cómica de recitativo escolar, declamava, da soleira da porta no primeiro andar do Alvo, um pastiche do Estudante Alsaciano:

Salve a escola risonha e franca
E sua jovem professora brincalhona…

Desde então a procura de inscrições crescia, porque cada moça, cada senhora fazia espontânea publicidade, recomendava às amigas: “Ela é formidável, cozinha como ninguém, sabe ensinar e é um encanto de pessoa. As aulas são tão divertidas, são duas horas de risadas, de anedotas, de pilhérias. Para passar o tempo não há nada melhor”. Por vezes era obrigada a recusar alunas tantas as candidatas às vagas trimestrais, nos dois cursos. Agora, no entanto, já três moças haviam abandonado a turma e até circulava a notícia do encerramento da escola. Onde aquela “professora brincalhona? Onde as duas horas de anedotas e pilhérias?” No meio da aula quando riam as moças, de súbito dona Flor como que se ausentava, os olhos perdidos, a face ansiosa. Quem gosta de carregar defunto dos outros, dias e dias às voltas com o morto, como se não existissem cemitérios?

Sua comadre, Dionísia Oxóssi viera visitá-la, trouxera o capeta do afilhado, chegara toda em escuro como exigiam os ritos de gentileza, mas chegara sorrindo, pois quase um mês já era passado e, com aquela, completava um turno de três visitas. A feição de tristeza de dona Flor a preocupou, jururu assim a comadre ia mal.

- Enterre o xará de uma vez, comadre… Senão ele começa a feder e a consumir tudo por aqui, até vosmicê…

Site Meter