sexta-feira, abril 23, 2010


DONA
FLOR
E SEUS
DOIS
MARIDOS


EPISÓDIO Nº 101


Vadinho acordou tarde, depois das onze, tinha chegado em casa de manhãzinha, numa cachaça bruta. Ao fazer a barba deu-se conta do silêncio inabitual, da falta das alunas do turno matutino. Por que não houvera aula naquele dia? Uma das moças, mulatinha doirada, esguia e frágil, punha-lhe olhos cativos, a fala dengosa. Vadinho já decidira levá-la a passeio quando tivesse tempo livre e disposição: para ensinar-lhe a beleza selvagem das praias desertas e o gosto da maresia.

Delicado junco de esbelteza, aquela sonsa Ieda, com seu donaire e seu enleio; estava na fila, à espera de vez. No momento, Vadinho atendia às exigências sexo-sentimentais de Zilda Catunda, a mais sapeca das três espevitadas Irmãs Catunda, sentindo porém aproximar-se o termo do xodó: a faceira dera em exigente, querendo mandar nele, controlar seus passos, com a mania de ter ciúmes e até de dona Flor, a atrevida.

Se não era dia santo nem feriado, por que não havia aula? Ao sair do banheiro, deparou com festiva atmosfera; dona Norma ajudando na cozinha, tia Lita a limpar os móveis, Thales Porto instalado na espreguiçadeira com jornais e um cálice de licor. Havia no ar um perfume de almoço comemorativo, mas por que essa comemoração sem motivo visível?

Um almoço farto, a casa cheia de amigos, regabofe dominical, eis um dos prazeres de Vadinho. Fossem menos vasqueiras suas finanças e com maior frequência ele repetiria rabadas e sarapatéis, maniçobas e vatapás. Apenas lhe vinha uma aragem de sorte e já programava uma feijoada, uma carne de sol com pirão de leite, um molho pardo de conquéns, sem falar no clássico caruru de Cosme e Damião, em Setembro, e na canjica e no jenipapo do são João. Mas, esse almoço flutuando no ar, sem aviso nem convite, que diabo de festa era essa? Dona Norma respondeu-lhe num esbregue:

- Você ainda tem coragem de perguntar, Vadinho? Não se lembra que hoje é o dia de aniversário de sua mulher?

- De Flor? Que dia é hoje? Dezanove de Dezembro?

A vizinha aperrienta, a ralhar:

- Você não toma mesmo vergonha… Vamos, diga: o que é que comprou para ela, que presente vai dar a essa santa…

Nada, dona Norma, não comprara nada e bem merecia o esporro, a censura pelo desleixo; mas era lá homem para recordar aniversários, escolher mimos em lojas? Uma lástima, perdera a oportunidade de fazer um bonito trazendo um presentão. Dona Flor ficaria doida de contentamento, como num outro aniversário, quando ele entregara, até com antecedência, dinheiro graúdo a dona Norma, encarregando-a de comprar “uma lembrança batuta, sem esquecer um frasco de cheiro, de Royal Briar, do qual ela gosta muito.”

Pena ter-se descuidado, logo quando atravessava um período de sorte excepcional, ganhando firme há quatro ou cinco dias.
Não só na roleta, no bacará, nos dados, no jogo do bicho; iniciara a semana acertando no milhar dois dias consecutivos.

Tão cheio de dinheiro a ponto de resgatar um título ameaçado de protesto para satisfazer compromisso de terceiro, salvando-lhe o crédito e o bom-nome.

E não era o salafra sequer seu amigo, um gabola bem-falante, simples relação de bar e cabaré. Fora, aliás, no Tabaris que o paroara, num porre daqueles, aceitou com ânimo generoso e raro entusiasmo, a ideia de avalizar a nota promissória assinada por Vadinho, a trinta dias de prazo.

Pouco depois de um mês, era Vadinho convocado ao escritório do gerente do banco onde se dera o desconto do título. Atendeu pressuroso ao convite, mantinha uma hábil política de boas relações
com os gerentes e subgerentes dos estabelecimentos bancários – dos quais tanto dependia.

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