quinta-feira, abril 29, 2010


DONA
FLOR
E SEUS
DOIS
MARIDOS


EPISÓDIO Nº 106


Mas Vadinho nunca se deixara convencer e, quando sem argumentos, fugia numa vaga promessa:

- Não há-de faltar ocasião…

Eis que finalmente surgia essa ocasião tão recusada. Dona Flor nem quis acreditar, quando ele, pegado de surpresa e sem recurso para desdizer-se, concordou ainda que a contragosto:

- Se é isso que você deseja… Um dia tinha de ser…

É, tendo decidido, logo desdobrou o projecto, ampliando o convite aos tios, a dona Norma – e por seu intermédio a Zé Sampaio – a dona Gisa.

Tia Lita agradeceu e recusou: vontade não lhe faltava, mas onde os vestidos de noite, as toaletes à altura do Pálace? Mais morta de vontade ainda dona Norma, uma noitada no Pálace era o supra-sumo, mas seu Sampaio foi inflexível: vizinha excelente, dona Flor, pessoa de sua estima, e o próprio Vadinho lhe era simpático. Agradecia o convite, mas, tivessem paciência não podia aceitar. Nos dias de semana, seu Sampaio, às nove da noite, já estava recolhido, punha-se de pé às seis da manhã para a labuta em sua loja de sapatos. Fosse soiré de sábado ou véspera de Domingo, de acordo e com prazer. Quanto a dona Norma ir ao Pálace sem ser em sua companhia, como aventava dona Flor, desculpassem; hipótese absurda, fora de cogitações.

A frequência de um ambiente como aquele, de jogo e bebidas, caracterizava-se pela mistura do melhor e do pior, numa promiscuidade onde se introduziam estroinas e libertinos sem noção de respeito às famílias.

Uma das poucas vezes em que lá estivera, arrastado por dona Norma, ansiosa de ouvir um xibungo francês (seu Sampaio nunca vira cara mais adamado e, no entanto, as mulheres suspiravam por ele), sucedera desagradável incidente. Bastou seu Sampaio deixar a mesa por um momento, premido pela urgência de ir ao mictório, e logo um ousado apareceu a querer tirar prosa com dona Norma, convidando-a para a pista de dança, a lhe gabar toalete e olheiras, como se ela fosse uma qualquer. Seu Sampaio só não exemplou o salafrário porque lhe conhecia a família, sua mãe, dona Belinha e as duas irmãs, gente da maior distinção, óptimas freguesas de sua loja, como aliás o próprio biltre, um habitué do jogo e da boémia, Zéquito Mirabeau, também conhecido entre as mulheres-dama como “o belo Mirabeau”.

Reduziram-se assim os acompanhantes à professora Gisa, feliz com o convite: pela oportunidade de ouvir The Honolulu’s Sisters e de poder perscrutar com seu olho sociológico e psicanalista o denegrido mundo da jogatina, estabelecendo-lhe a definitiva metafísica.

Dona Flor passou o resto do dia numa azáfama: a decidir com a ajuda de dona Norma e de dona Gisa, sobre vestido e estola, luvas e chapéu, a escolher sapatos e bolsa. Naquela noite, nos salões do Pálace, tinha de ser a mais bela de todas, a mais elegante, sem que nenhuma outra pudesse com ela se medir e comparar, nem senhora fidalga da Graça, com vestidos do Rio nem rapariga de banqueiro ou fazendeiro de cacau, com enfeites de Paris. Naquela noite ia finalmente
transpor
a vedada porta.

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