sexta-feira, abril 30, 2010


DONA
FLOR
E SEUS
DOIS
MARIDOS


EPISÓDIO Nº 107




Quando dona flor, trémula, ao braço de Vadinho, cruzou a porta do salão do Pálace Hotel, numa singular coincidência a orquestra executava o mesmo antigo e nunca envelhecido tango por eles dançado naquele primeiro encontro em casa do Major Tiririca, ao som do piano de Joãozinho Navarro, durante as festas do Rio Vermelho, na semana da procissão de Yemanjá. Sentindo o coração pulsar mais forte, dona Flor sorriu para o marido:

- Você se lembra?

Diante deles estava a sala numa meia sombra de luzes camufladas, um abajur de papel colorido sobre cada lâmpada, perfeição de mau gosto; dona Flor achando tudo lindo, a semi-obscuridade, as mesas com flores de papel crepon e o abajur, que amor, meu deus! Vadinho olhou em torno sem localizar sem localizar lembrança alguma, tudo lhe era familiar e íntimo, mas nada daquilo se referia a dona Flor.

- De que, meu bem?

- Da música que está tocando. É a mesma que a gente dançou no dia que se conheceu… Na festa do Major, se lembra?

Vadinho sorriu: “é mesmo…” enquanto ocupavam a mesa reservada, mesa de pista bem em frente à passagem a unir os salões, o de dança e o de jogo. Dali, sentadas, Flor e dona Gisa podiam apreciar todo o movimento, evoluções de dançarinos, agitação de jogadores. Ainda de pé, Vadinho examinou a pista ocupada por dois pares de tão eméritos tanguistas a ponto de mais ninguém se atrever a competir com eles. As damas eram duas das irmãs Catunda.

A mais velha e negra tinha de cavalheiro a um tipo alto e romântico, roupa na última moda, jeito de galã sul-americano de cinema, ar de gigolô. Vadinho soube depois ao ser-lhe apresentado, tratar-se de Paulista a passeio na Bahia, Barros Martins de nome, honesto editor de livros e, como é óbvio, em se tratando de um editor, riquíssimo. Um retado no tango, com modos e competência de profissional, traçando letras, como se diz, numa execução impecável de laboriosos passos.

A mais nova e branca, nos braços de Zéquito Mirabeau, o mesmo “belo Mirabeau” das marafonas e da encrenca com Zé Sampaio. De olhos voltados para o alto, mordendo o lábio, levando de quando em vez a mão nervosa à cabeleira esvoaçante, não fazia por menos o baiano, desdobrando seu tango na maior maciota, a chuetar do paulista em floreios e requintes; um tango barroco.

Vadinho observou a cena e, ainda a sorrir, estendeu a mão a dona Flor e lhe propôs, ajudando-a a levantar-se da cadeira:

- Meu bem, vamos dar um quinau nesses coiós? Vamos ensinar a eles como é que se dança o tango?

- Será que ainda sei? Faz tanto tempo que não danço, estou com as juntas emperradas…

Dançara pela última vez há mais de seis meses, quando Vadinho, por qualquer milagre, fora com ela a um assustado em casa de dona Êmina, brincadeira de aniversário. Vadinho era exímio pé de valsa, e dona Flor dançava bem e gostava de dançar. Um dos seus motivos de permanente desgosto residia no facto de quase nunca dançarem os dois, devido a muito de raro em raro acompanhá-la Vadinho às festinhas em residências amigas. E, sem o marido, reduzida à animação dos comentários, dos fuxicos, das mesas de doce, não lhe passava sequer pela cabeça a ideia subversiva de dançar com outro cavalheiro, coisa que mulher casada só pode fazer com expresso
consentimento e na presença de seu senhor esposo.

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