A Minha Última
Operação na Guerra
Colonial de Angola
Era minha intenção dar este tema como terminado excluindo dele a experiência que foi a minha última operação no Norte de Angola antes de seguir para o Leste passar em paz o resto da comissão mas, se o fizesse, omitiria aquele que foi, sem dúvida, o meu único momento de guerra a sério de toda a minha comissão.
Quando, por exaustão, as tropas eram retiradas da zona de guerra, mais ou menos ao fim de um ano, e transferidas para outras regiões, era comum fazerem uma pausa em Luanda e aí serem aproveitadas pelos Altos Comandos para uma última Operação em Zona de Guerra, espécie de cereja em cima do bolo, ou de preço a pagar pela passagem para uma Zona pacífica. A essas tropas chamavam-lhes de Intervenção.
Era uma oportunidade para as Chefias Militares, sedeadas no ar condicionado de Luanda, fazerem a sua própria guerra, concebendo e realizando Operações que eram desencadeadas em locais escolhidos por serem considerados importantes do ponto de vista estratégico e envolviam grande número de efectivos.
Nessas Operações, oficiais superiores, Majores ou Tenente-Coronéis, dentro de pequenas avionetas ao lado dos pilotos, sobrevoavam a zona em que as tropas operavam tentando fazer o acompanhamento que não era fácil porque cá em baixo era um ininterrupto tapete verde.
Para terem uma ideia da movimentação dos grupos de combate no terreno e da sua localização davam, então, ordens pela rádio para que fossem lançadas granadas de fumo, o que não era do agrado das tropas que operavam no terreno porque tinham de interromper a marcha e correrem o risco de que esses sinais fossem também notados pelos guerrilheiros.
Percebíamos, no entanto, que essa era a maneira desses Oficiais participarem mais directamente na guerra sem o esforço e riscos inerentes e ao mesmo tempo poderem fiscalizar o cumprimento dos itinerários fixados nas Cartas de Operações… ou pelo menos tentarem.
Era este o contexto em que fiz a minha última Operação na Guerra Colonial e que só por muita sorte não foi, igualmente, a última coisa que fiz na minha vida.
Mas se hoje a posso relatar porque lhe sobrevivi a minha vontade era, no entanto, esquecê-la, ou melhor ainda, que ela nunca tivesse acontecido.
Deixem-me, por isso, fazer previamente uma reflexão:
Afirmei no início do relato destas memórias que não houve uma guerra mas tantas quantas os que nela participaram.
O cunho e a marca da guerra estão não só nos factos, no que acontece enquanto vivemos essa experiência traumática, mas principalmente na forma como cada um sente e reage interiormente a tudo isso.
Todos fomos criados e educados num quadro de valores que respeita a vida humana mas quando nos põem uma arma nas mãos, vestem um camuflado e nos mandam para a guerra, imediatamente interiorizamos que vamos morrer e matar e por isso, quando passadas poucas semanas de termos chegado ao Úcua, um Unimog foi emboscado pelo inimigo e quase todos os seus ocupantes, meus camaradas de Batalhão, foram mortos, incluindo o meu amigo Setúbal, o que eu senti, fundamentalmente, é que a sentença da guerra estava-se a cumprir entre aqueles que eram os seus protagonistas.
No fundo, na morte daqueles soldados havia qualquer coisa de terrivelmente óbvio: os soldados foram concebidos para morrer, umas vezes uns, do lado de cá, outras vezes outros, do lado de lá.
Se alguma coisa faz sentido numa guerra é a morte dos soldados que nela participam e por isso a morte de um soldado não envergonha o outro soldado que o mata, envergonha mais se o não matar e ainda mais se se deixar matar. Os superiores não lhe perdoarão ter contribuído para aumentar o número das baixas em combate…
Assim, a minha reacção não foi contra o soldado nosso inimigo mas para os promotores daquela guerra que nos puseram uma arma na mão, vestiram-nos o camuflado e tiveram o desplante de nos dizerem que íamos defender o solo pátrio, sem esclarecerem que nele se camuflavam os interesses dos senhores do café, do algodão, do sisal, dos diamantes, do açúcar, (ainda não tinha aparecido em cena o petróleo), a maior parte residentes em Portugal com breves visitas a África, o tempo necessário para gozarem de umas bem organizadas caçadas.
Mas regressemos à minha última Operação:
Desenrolou-se tendo como base e ponto de partida a fazenda Maria João, no Coração dos Dembos, bem no centro do norte de Angola e nela participaram várias Companhias que saindo em simultâneo do mesmo ponto percorriam itinerários diferentes com objectivos de “limpeza”, perfeitamente delirantes tendo em conta a riqueza da vegetação e o desconhecimento e pouco à vontade que possuíamos quando comparados com o das populações que faziam dela a sua casa.
Fomos largados de viaturas naquilo a que eles chamavam picada e que há muito já tinha deixado de o ser (as picadas se não utilizadas, rapidamente são invadidas pelo capim e a restante vegetação se apodera delas) e deveríamos seguir para Norte até encontrar uma outra picada que, de certeza, estaria nas mesmas condições e onde as viaturas nos reconduziriam de regresso à fazenda Maria João.
Com o meu pelotão ia também um outro que era comandado por um Alferes licenciado em medicina mas que não tendo ainda feito o estágio, cumpria a comissão como oficial de infantaria e pertencia à guarnição militar que estava instalada na própria fazenda Maria João.
O seu estado de espírito não podia ser pior. Estava deprimido e era completa a saturação e o desinteresse que manifestava por tudo o que o rodeava.
Antes de partirmos acercou-se de mim e disse-me:
- “Não quero saber disto para nada, você comanda e eu vou ser apenas mais um soldado”… não mais voltei a dar pela sua presença.
A operação decorreu num vale profundo de encostas bem acentuadas e que se prolongava na sentido sul/norte.
As encostas do vale estavam desmatadas até uma certa altura para aproveitarem o terreno para a agricultura na parte mais baixa e fértil. Era uma agricultura de subsistência das populações que se tinham subtraído ao controle das autoridades portuguesas e viviam refugiadas no mato juntamente com os guerrilheiros que tinham a obrigação de as protegerem.
Começamos a deslocação para norte, pela encosta do lado esquerdo do vale, na orla do terreno que estava mais limpo e encobertos pela vegetação da floresta.
Era-nos, assim, relativamente fácil, observar o que se passava à nossa direita, mais abaixo, sem que o contrário fosse igualmente possível.
Caminhávamos uns atrás dos outros numa fila que se prolongava por dezenas de metros e durante algum tempo nada aconteceu.
De repente, ouvi um tiro, depois mais tiros, um alvoroço, alguns soldados descem a correr a encosta, atravessam o vale e perseguem pessoas que fogem subindo a encosta do outro lado.
Regressam passado pouco tempo os que tinham saído em perseguição, a calma restabelece-se progressivamente… o drama estava consumado.
Uma jovem tinha sido morta por uma bala que disparada de muito longe entrara pelas costas e atravessara-lhe o coração. Um outro soldado cortou-lhe um dedo para trazer para casa como troféu de guerra e eu… tive uma enorme vontade de fugir dali, desaparecer…eu que era o comandante daquela tropa e nem sequer podia recriminar o soldado que matou a jovem porque apenas cumprira as instruções do Quartel General de matar tudo o que mexesse, a tal limpeza a que já me referi.
Não conheci bem este soldado no sentido de que não tive com ele uma grande convivência. Era da minha Companhia mas do Pelotão do meu colega Ataíde. Tinha um aspecto rude, possante, algo primitivo, provavelmente pouco menos do que analfabeto.
Dizer-lhe que a utilização de uma arma, mesmo numa situação de guerra, é sempre da responsabilidade de quem a utiliza, faria algum sentido para ele?
Manifestar-lhe o meu desagrado não seria estabelecer a confusão na sua cabeça?
Perguntar-lhe se ele gostaria que fossem à sua aldeia e lhe matassem a irmã ou a namorada quando ela estavivesse a trabalhar no campo, era justo?
Do outro soldado, do que cortou o dedo do cadáver da jovem para recordação, não procurei saber na altura quem era, sentia demasiada vergonha por mim e por ele.
Quarenta e quatro anos mais tarde pediu-me desculpa: “eu era um garoto…”, mas não seríamos nós todos uns garotos?
Foram, para mim, momentos de pânico e desorientação, não queria estar ali nem mais um minuto e por isso dei instruções para que continuássemos o nosso trajecto o mais rapidamente possível.
Atacar civis, pessoas indefesas, não era guerra nenhuma, era um morticínio.
Cansado daquelas marchas, do ar saturado de humidade que não nos deixava respirar, do peso da espingarda, cartucheiras, bornal, capa de borracha, cantil, que depressa esvaziava… quando à noite me deixava cair o que me esperava era sempre um sono profundo e descansado, tendo por almofada o meu bornal e por lençóis a capa de borracha.
Sempre? ...não, naquela noite quase não preguei olho, os gritos de dor pela morte da jovem ecoavam por todo aquele vale.
Eram gritos lancinantes, doridos, acusatórios e o silêncio que se lhes seguia parecia total, como se os bichos da floresta tivessem decidido calar-se nessa noite para eu melhor os poder ouvir.
No outro dia, ainda o sol não nascera e já nos tínhamos posto em marcha que só não eram forçadas porque as condições do terreno e da vegetação não o permitiam.
Era ténue a minha esperança de conseguir escapar à emboscada que de certo me esperaria em qualquer ponto do percurso.
Os guerrilheiros não podiam permitir que a tropa fosse ao seu terreno matar uma jovem do seu povo da mesma forma que se caça uma gazela e saísse do emaranhado de toda aquela vegetação com total impunidade. Era para eles uma questão de honra.
Por isso, começamos a andar ainda de noite e continuávamos a apressar o andamento na esperança de sair dali depressa, antes que tivessem tempo de armar a emboscada.
Já era bem de dia quando o vale se bifurcou.
Eu devia continuar em frente, sempre para norte, sempre por aquele vale. O Quartel-General sabia bem que era ao longo dele que se encontravam as populações e por isso o itinerário era aquele e não outro.
Mas chegados àquela bifurcação decidi desrespeitar as ordens, seguir pelo vale da esquerda, de vegetação mais densa de tal forma que era praticamente impossível montar ali uma emboscada ou fosse o que fosse, e em distância, parecia-me encurtar caminho.
Disse aos homens para encherem os cantis num fio de água que por ali passava e foi nesse momento, com eles dobrados sobre si próprios, involuntariamente meio escondidos para recolherem a água e eu de pé, a fazer não sei bem o quê, que o tiroteio começou.
Eles pensaram exactamente aquilo que eu iria fazer, aquele era o sítio certo para a emboscada, antes de fugir pelo vale da esquerda que tendo uma vegetação tão densa não permitiria qualquer acção militar.
Entretanto, os tiros prosseguiam e eu continuava de pé, aparentemente de desafio: …vá estou aqui, de pé, acertem-me se forem capazes, vinguem a vossa jovem que nós matámos…
- “Meu alferes, saia daí, esconda-se, que eles matam-no!”… gritou-me o Maia, (já falecido) deitado atrás de um tronco de uma árvore caída no terreno.
Dirigi-me para junto dele, normalmente, como quem muda de mesa na esplanada do café, com a inconsciência do perigo própria de quem não nasceu para aquelas coisas.
-“Meu alferes, as balas aos seus pés até levantavam pó!”
Entretanto, alguém gritou que eles estavam em cima das árvores a fazerem fogo para cima de nós e logo tudo quanto tinha folhas e ramos foi varrido pelas rajadas das G3.
Nitidamente, o efeito da surpresa tinha passado e o nosso maior poder de fogo estava a impor-se.
Chamei o homem da bazuca e mandei-o disparar duas granadas na esperança de que alguma delas conseguisse passar por entre as árvores e explodisse contra a outra encosta do vale.
A primeira rebentou logo à nossa frente, deu cabo de uma árvore que estava muito próxima e “choveram” bocadinhos de madeira para cima de nós.
- “É pá, levanta o cano dessa merda para ver se consegues fazer a granada passar por cima das árvores!
Inspirado pelos “deuses da guerra”, o homem da bazuca, à segunda tentativa, conseguiu que a granada passasse por entre as árvores, as sobrevoasse e estourasse contra a encosta do vale, no outro lado.
O efeito ultrapassou tudo o que se poderia esperar: o estrondo do rebentamento multiplicado pelo eco, possível pelo facto das encostas serem suficientemente íngremes e próximas a funcionarem como paredes em frente uma da outra, parecia coisa do apocalipse.
De repente, “vinte exércitos” tinham entrado em cena e accionado os seus dispositivos de lançamento de granadas. Quando, finalmente, os rebentamentos se deixaram de ouvir, a guerra tinha acabado, a calma e o silêncio estabeleceram-se como se nada ali tivesse acontecido.
Levantámo-nos lentamente olhando e perguntando uns pelos outros e inacreditavelmente estavam todos bem, apenas um sargento enfermeiro, de mais idade e pesado, tinha desmaiado de comoção mas estava a recuperar.
Tiveram a oportunidade de uma justa vingança e não a aproveitaram. Dispararam de surpresa de cima das árvores a distâncias que não eram muito grandes e poderiam ter-nos causado inúmeras baixas…éramos mais de sessenta alvos.
Em vez disso, não acertaram em ninguém, a jovem não foi vingada… mas eles tentaram, cumpriram a sua obrigação, provavelmente com feridos ou mortos pois foram vistos alguns a atirarem-se das árvores, não sabemos se atingidos ou não.
A continuação da marcha foi penosa, momentos houve em que a vegetação de tão densa que era foi-nos aprisionando de pernas e braços, obrigando a recuos e avanços que eram uma autêntica luta contra o emaranhado dos ramos.
Finalmente, exaustos de cansaço, fome e sede porque no meio de toda aquela confusão e na pressa de abandonar o local nem enchemos os cantis de água, lá chegámos ao destino, já de noite, mas vivos e sem feridos.
Aquilo que nos separou da morte, nesse dia, foi um simples capricho do acaso.
Quarenta e quatro anos depois convenço-me cada vez mais que é ele, o acaso, que comanda a vida, sempre a comandou. Todo o processo evolutivo, em certa medida, foi determinado pelo acaso e as nossas humildes vidas, claro, também não lhe podiam fugir.
Pensei muitas vezes, ao longo de todos estes anos, naquela jovem com um sentimento de culpa pela sua morte.
Propositadamente, não quis vê-la para não lhe recordar o rosto pela vida fora mas é fácil imaginá-lo e ele tem-me acompanhado, sinal de que a minha consciência não está completamente descansada.
Afinal, eu era o comandante daquela Operação e antes dela começar deveria ter dado instruções a todos os soldados de que, a menos que fôssemos atacados, ninguém dava tiros sem minha autorização.
Esta ordem ficou por dar e custou a vida àquela rapariga e a minha consciência carregará sempre esse peso.
Para ela, flores…todas as flores deste mundo!.
Operação na Guerra
Colonial de Angola
(Novembro de 1963)
Era minha intenção dar este tema como terminado excluindo dele a experiência que foi a minha última operação no Norte de Angola antes de seguir para o Leste passar em paz o resto da comissão mas, se o fizesse, omitiria aquele que foi, sem dúvida, o meu único momento de guerra a sério de toda a minha comissão.
Quando, por exaustão, as tropas eram retiradas da zona de guerra, mais ou menos ao fim de um ano, e transferidas para outras regiões, era comum fazerem uma pausa em Luanda e aí serem aproveitadas pelos Altos Comandos para uma última Operação em Zona de Guerra, espécie de cereja em cima do bolo, ou de preço a pagar pela passagem para uma Zona pacífica. A essas tropas chamavam-lhes de Intervenção.
Era uma oportunidade para as Chefias Militares, sedeadas no ar condicionado de Luanda, fazerem a sua própria guerra, concebendo e realizando Operações que eram desencadeadas em locais escolhidos por serem considerados importantes do ponto de vista estratégico e envolviam grande número de efectivos.
Nessas Operações, oficiais superiores, Majores ou Tenente-Coronéis, dentro de pequenas avionetas ao lado dos pilotos, sobrevoavam a zona em que as tropas operavam tentando fazer o acompanhamento que não era fácil porque cá em baixo era um ininterrupto tapete verde.
Para terem uma ideia da movimentação dos grupos de combate no terreno e da sua localização davam, então, ordens pela rádio para que fossem lançadas granadas de fumo, o que não era do agrado das tropas que operavam no terreno porque tinham de interromper a marcha e correrem o risco de que esses sinais fossem também notados pelos guerrilheiros.
Percebíamos, no entanto, que essa era a maneira desses Oficiais participarem mais directamente na guerra sem o esforço e riscos inerentes e ao mesmo tempo poderem fiscalizar o cumprimento dos itinerários fixados nas Cartas de Operações… ou pelo menos tentarem.
Era este o contexto em que fiz a minha última Operação na Guerra Colonial e que só por muita sorte não foi, igualmente, a última coisa que fiz na minha vida.
Mas se hoje a posso relatar porque lhe sobrevivi a minha vontade era, no entanto, esquecê-la, ou melhor ainda, que ela nunca tivesse acontecido.
Deixem-me, por isso, fazer previamente uma reflexão:
Afirmei no início do relato destas memórias que não houve uma guerra mas tantas quantas os que nela participaram.
O cunho e a marca da guerra estão não só nos factos, no que acontece enquanto vivemos essa experiência traumática, mas principalmente na forma como cada um sente e reage interiormente a tudo isso.
Todos fomos criados e educados num quadro de valores que respeita a vida humana mas quando nos põem uma arma nas mãos, vestem um camuflado e nos mandam para a guerra, imediatamente interiorizamos que vamos morrer e matar e por isso, quando passadas poucas semanas de termos chegado ao Úcua, um Unimog foi emboscado pelo inimigo e quase todos os seus ocupantes, meus camaradas de Batalhão, foram mortos, incluindo o meu amigo Setúbal, o que eu senti, fundamentalmente, é que a sentença da guerra estava-se a cumprir entre aqueles que eram os seus protagonistas.
No fundo, na morte daqueles soldados havia qualquer coisa de terrivelmente óbvio: os soldados foram concebidos para morrer, umas vezes uns, do lado de cá, outras vezes outros, do lado de lá.
Se alguma coisa faz sentido numa guerra é a morte dos soldados que nela participam e por isso a morte de um soldado não envergonha o outro soldado que o mata, envergonha mais se o não matar e ainda mais se se deixar matar. Os superiores não lhe perdoarão ter contribuído para aumentar o número das baixas em combate…
Assim, a minha reacção não foi contra o soldado nosso inimigo mas para os promotores daquela guerra que nos puseram uma arma na mão, vestiram-nos o camuflado e tiveram o desplante de nos dizerem que íamos defender o solo pátrio, sem esclarecerem que nele se camuflavam os interesses dos senhores do café, do algodão, do sisal, dos diamantes, do açúcar, (ainda não tinha aparecido em cena o petróleo), a maior parte residentes em Portugal com breves visitas a África, o tempo necessário para gozarem de umas bem organizadas caçadas.
Mas regressemos à minha última Operação:
Desenrolou-se tendo como base e ponto de partida a fazenda Maria João, no Coração dos Dembos, bem no centro do norte de Angola e nela participaram várias Companhias que saindo em simultâneo do mesmo ponto percorriam itinerários diferentes com objectivos de “limpeza”, perfeitamente delirantes tendo em conta a riqueza da vegetação e o desconhecimento e pouco à vontade que possuíamos quando comparados com o das populações que faziam dela a sua casa.
Fomos largados de viaturas naquilo a que eles chamavam picada e que há muito já tinha deixado de o ser (as picadas se não utilizadas, rapidamente são invadidas pelo capim e a restante vegetação se apodera delas) e deveríamos seguir para Norte até encontrar uma outra picada que, de certeza, estaria nas mesmas condições e onde as viaturas nos reconduziriam de regresso à fazenda Maria João.
Com o meu pelotão ia também um outro que era comandado por um Alferes licenciado em medicina mas que não tendo ainda feito o estágio, cumpria a comissão como oficial de infantaria e pertencia à guarnição militar que estava instalada na própria fazenda Maria João.
O seu estado de espírito não podia ser pior. Estava deprimido e era completa a saturação e o desinteresse que manifestava por tudo o que o rodeava.
Antes de partirmos acercou-se de mim e disse-me:
- “Não quero saber disto para nada, você comanda e eu vou ser apenas mais um soldado”… não mais voltei a dar pela sua presença.
A operação decorreu num vale profundo de encostas bem acentuadas e que se prolongava na sentido sul/norte.
As encostas do vale estavam desmatadas até uma certa altura para aproveitarem o terreno para a agricultura na parte mais baixa e fértil. Era uma agricultura de subsistência das populações que se tinham subtraído ao controle das autoridades portuguesas e viviam refugiadas no mato juntamente com os guerrilheiros que tinham a obrigação de as protegerem.
Começamos a deslocação para norte, pela encosta do lado esquerdo do vale, na orla do terreno que estava mais limpo e encobertos pela vegetação da floresta.
Era-nos, assim, relativamente fácil, observar o que se passava à nossa direita, mais abaixo, sem que o contrário fosse igualmente possível.
Caminhávamos uns atrás dos outros numa fila que se prolongava por dezenas de metros e durante algum tempo nada aconteceu.
De repente, ouvi um tiro, depois mais tiros, um alvoroço, alguns soldados descem a correr a encosta, atravessam o vale e perseguem pessoas que fogem subindo a encosta do outro lado.
Regressam passado pouco tempo os que tinham saído em perseguição, a calma restabelece-se progressivamente… o drama estava consumado.
Uma jovem tinha sido morta por uma bala que disparada de muito longe entrara pelas costas e atravessara-lhe o coração. Um outro soldado cortou-lhe um dedo para trazer para casa como troféu de guerra e eu… tive uma enorme vontade de fugir dali, desaparecer…eu que era o comandante daquela tropa e nem sequer podia recriminar o soldado que matou a jovem porque apenas cumprira as instruções do Quartel General de matar tudo o que mexesse, a tal limpeza a que já me referi.
Não conheci bem este soldado no sentido de que não tive com ele uma grande convivência. Era da minha Companhia mas do Pelotão do meu colega Ataíde. Tinha um aspecto rude, possante, algo primitivo, provavelmente pouco menos do que analfabeto.
Dizer-lhe que a utilização de uma arma, mesmo numa situação de guerra, é sempre da responsabilidade de quem a utiliza, faria algum sentido para ele?
Manifestar-lhe o meu desagrado não seria estabelecer a confusão na sua cabeça?
Perguntar-lhe se ele gostaria que fossem à sua aldeia e lhe matassem a irmã ou a namorada quando ela estavivesse a trabalhar no campo, era justo?
Do outro soldado, do que cortou o dedo do cadáver da jovem para recordação, não procurei saber na altura quem era, sentia demasiada vergonha por mim e por ele.
Quarenta e quatro anos mais tarde pediu-me desculpa: “eu era um garoto…”, mas não seríamos nós todos uns garotos?
Foram, para mim, momentos de pânico e desorientação, não queria estar ali nem mais um minuto e por isso dei instruções para que continuássemos o nosso trajecto o mais rapidamente possível.
Atacar civis, pessoas indefesas, não era guerra nenhuma, era um morticínio.
Cansado daquelas marchas, do ar saturado de humidade que não nos deixava respirar, do peso da espingarda, cartucheiras, bornal, capa de borracha, cantil, que depressa esvaziava… quando à noite me deixava cair o que me esperava era sempre um sono profundo e descansado, tendo por almofada o meu bornal e por lençóis a capa de borracha.
Sempre? ...não, naquela noite quase não preguei olho, os gritos de dor pela morte da jovem ecoavam por todo aquele vale.
Eram gritos lancinantes, doridos, acusatórios e o silêncio que se lhes seguia parecia total, como se os bichos da floresta tivessem decidido calar-se nessa noite para eu melhor os poder ouvir.
No outro dia, ainda o sol não nascera e já nos tínhamos posto em marcha que só não eram forçadas porque as condições do terreno e da vegetação não o permitiam.
Era ténue a minha esperança de conseguir escapar à emboscada que de certo me esperaria em qualquer ponto do percurso.
Os guerrilheiros não podiam permitir que a tropa fosse ao seu terreno matar uma jovem do seu povo da mesma forma que se caça uma gazela e saísse do emaranhado de toda aquela vegetação com total impunidade. Era para eles uma questão de honra.
Por isso, começamos a andar ainda de noite e continuávamos a apressar o andamento na esperança de sair dali depressa, antes que tivessem tempo de armar a emboscada.
Já era bem de dia quando o vale se bifurcou.
Eu devia continuar em frente, sempre para norte, sempre por aquele vale. O Quartel-General sabia bem que era ao longo dele que se encontravam as populações e por isso o itinerário era aquele e não outro.
Mas chegados àquela bifurcação decidi desrespeitar as ordens, seguir pelo vale da esquerda, de vegetação mais densa de tal forma que era praticamente impossível montar ali uma emboscada ou fosse o que fosse, e em distância, parecia-me encurtar caminho.
Disse aos homens para encherem os cantis num fio de água que por ali passava e foi nesse momento, com eles dobrados sobre si próprios, involuntariamente meio escondidos para recolherem a água e eu de pé, a fazer não sei bem o quê, que o tiroteio começou.
Eles pensaram exactamente aquilo que eu iria fazer, aquele era o sítio certo para a emboscada, antes de fugir pelo vale da esquerda que tendo uma vegetação tão densa não permitiria qualquer acção militar.
Entretanto, os tiros prosseguiam e eu continuava de pé, aparentemente de desafio: …vá estou aqui, de pé, acertem-me se forem capazes, vinguem a vossa jovem que nós matámos…
- “Meu alferes, saia daí, esconda-se, que eles matam-no!”… gritou-me o Maia, (já falecido) deitado atrás de um tronco de uma árvore caída no terreno.
Dirigi-me para junto dele, normalmente, como quem muda de mesa na esplanada do café, com a inconsciência do perigo própria de quem não nasceu para aquelas coisas.
-“Meu alferes, as balas aos seus pés até levantavam pó!”
Entretanto, alguém gritou que eles estavam em cima das árvores a fazerem fogo para cima de nós e logo tudo quanto tinha folhas e ramos foi varrido pelas rajadas das G3.
Nitidamente, o efeito da surpresa tinha passado e o nosso maior poder de fogo estava a impor-se.
Chamei o homem da bazuca e mandei-o disparar duas granadas na esperança de que alguma delas conseguisse passar por entre as árvores e explodisse contra a outra encosta do vale.
A primeira rebentou logo à nossa frente, deu cabo de uma árvore que estava muito próxima e “choveram” bocadinhos de madeira para cima de nós.
- “É pá, levanta o cano dessa merda para ver se consegues fazer a granada passar por cima das árvores!
Inspirado pelos “deuses da guerra”, o homem da bazuca, à segunda tentativa, conseguiu que a granada passasse por entre as árvores, as sobrevoasse e estourasse contra a encosta do vale, no outro lado.
O efeito ultrapassou tudo o que se poderia esperar: o estrondo do rebentamento multiplicado pelo eco, possível pelo facto das encostas serem suficientemente íngremes e próximas a funcionarem como paredes em frente uma da outra, parecia coisa do apocalipse.
De repente, “vinte exércitos” tinham entrado em cena e accionado os seus dispositivos de lançamento de granadas. Quando, finalmente, os rebentamentos se deixaram de ouvir, a guerra tinha acabado, a calma e o silêncio estabeleceram-se como se nada ali tivesse acontecido.
Levantámo-nos lentamente olhando e perguntando uns pelos outros e inacreditavelmente estavam todos bem, apenas um sargento enfermeiro, de mais idade e pesado, tinha desmaiado de comoção mas estava a recuperar.
Tiveram a oportunidade de uma justa vingança e não a aproveitaram. Dispararam de surpresa de cima das árvores a distâncias que não eram muito grandes e poderiam ter-nos causado inúmeras baixas…éramos mais de sessenta alvos.
Em vez disso, não acertaram em ninguém, a jovem não foi vingada… mas eles tentaram, cumpriram a sua obrigação, provavelmente com feridos ou mortos pois foram vistos alguns a atirarem-se das árvores, não sabemos se atingidos ou não.
A continuação da marcha foi penosa, momentos houve em que a vegetação de tão densa que era foi-nos aprisionando de pernas e braços, obrigando a recuos e avanços que eram uma autêntica luta contra o emaranhado dos ramos.
Finalmente, exaustos de cansaço, fome e sede porque no meio de toda aquela confusão e na pressa de abandonar o local nem enchemos os cantis de água, lá chegámos ao destino, já de noite, mas vivos e sem feridos.
Aquilo que nos separou da morte, nesse dia, foi um simples capricho do acaso.
Quarenta e quatro anos depois convenço-me cada vez mais que é ele, o acaso, que comanda a vida, sempre a comandou. Todo o processo evolutivo, em certa medida, foi determinado pelo acaso e as nossas humildes vidas, claro, também não lhe podiam fugir.
Pensei muitas vezes, ao longo de todos estes anos, naquela jovem com um sentimento de culpa pela sua morte.
Propositadamente, não quis vê-la para não lhe recordar o rosto pela vida fora mas é fácil imaginá-lo e ele tem-me acompanhado, sinal de que a minha consciência não está completamente descansada.
Afinal, eu era o comandante daquela Operação e antes dela começar deveria ter dado instruções a todos os soldados de que, a menos que fôssemos atacados, ninguém dava tiros sem minha autorização.
Esta ordem ficou por dar e custou a vida àquela rapariga e a minha consciência carregará sempre esse peso.
Para ela, flores…todas as flores deste mundo!.
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