DONA
FLOR
E SEUS
DOIS
MARIDOS
Ao completar-se um mês sobre a morte de Vadinho, após assistir à missa, dona Flor dirigiu-se ao Mercadinho das Flores, no Cabeça. Pela segunda vez saía de casa desde aquele singular domingo, quando a morte golpeou, no Carnaval. A primeira, fora para a missa do sétimo dia.
Veio andando da igreja por entre a curiosidade do povo. Do balcão do bar, Mendez a cumprimentou, e seu Moreira, o português do restaurante, com um berro, advertiu a mulher, ocupada na cozinha: “depressa, Maria, vem ver a viúva”. Na rua, três ou quatro homens, entre os quais o janota argentino, seu Bernabó, tiraram-lhe o chapéu.
Na esquina do açougue, a negra Vitorina se pôs de pé, atrás de seu tabuleiro de abarás e acarajés: “Salve, minha iaiá, atôtô, atôtô!” Na porta da Drogaria Científica, doutor Teodoro Madureira, o farmacêutico, inclinou-se em grave reverência, na exacta medida do pesar e da aflição. O professor Epaminondas Sousa Pinto, afobado e aéreo como sempre, livros e cadernos sob o suor do sovaco, estendeu-lhe a mão:
- Minha cara senhora… A vida… O inevitável…
Os bêbados do botequim, no aperitivo matinal, os fregueses do armazém, o fazendeiro Moysés Alves a escolher especiarias para seus insignes almoços, saíram a vê-la, inclinavam-se em silêncio. O santeiro Alfredo, amigo do tio Thales, estabelecido ali perto com sua porta de imagens, abandonando a madeira onde esculpia, colocou-se à sua disposição:
- Bom dia, Flor. Posso lhe ser útil?
Acorreram os vendedores com a mercadoria. Ela comprou rosas e cravos, palmas e violetas, dálias e saudades.
Um negro alto e magro, perfil agudo, face enigmática, ainda relativamente jovem, ouvido com atenção e respeito por mecânicos e choferes do ponto de táxis, ao saber a identidade de dona Flor e o motivo dessa compra de flores, dela se aproximou a lhe solicitar algumas de empréstimo e por um momento apenas.
Um pouco surpresa, dona Flor, o satisfez, estendendo-lhe o colorido ramalhete onde ele próprio escolheu, num cuidado ritual, três cravos amarelos e quatro saudades roxas; quem seria esse homem e porque tomava dessas poucas flores?
Do bolso do paletó extraiu um fio trançado de palha da costa, um mokan, com ele amarrando cravos e saudades num pequeno buquê e dando um nó.
- Desamarre quando arriar na cova de Vadinho. É para o egun dele se aquietar – e disse em nagô, diminuindo a voz: - Aku abó!
Eis que o negro era o babalaô Didi, zelador da casa de Ossain, mago de Ifá; e só passado muito tempo dona Flor aprenderia seu nome e seus poderes, sua fama de adivinho, seu posto de Korikoe Ulukótum no terreiro dos eguns, na Amoreira.
Vestia-se dona Flor toda em negro, da cabeça aos pés, luto fechado pois apenas um mês decorrera após a morte do esposo. Mas o pequeno véu sobre os retintos cabelos quase azuis não lhe cobria o rosto e aquela expressão de angústia suicida já não lhe marcava a face. Triste ainda mas não desesperada nem vazia.
Cercada pela leveza do ar nessa manhã transparente, tão formosa de luz e tão à medida do homem que era um privilégio vivê-la, dona Flor, levantando a vista do chão, voltou a olhar e a ver o espectáculo da rua e a cor do dia.
Por entre cabeças se descobrindo ou se inclinando, a recolher gestos e palavras de conforto e simpatia, em meio ao meio do bulício da cidade, gente a passar, a conversar, a rir, dona Flor caminhou com seu buquê de Flores destinada à campa de Vadinho. Ia em direcção ao cemitério mas era de novo na vida que penetrava; ei-la de retorno, convalescente ainda.
Não a mesma dona Flor de antes, com certeza; enterrara algumas emoções e certos sentimentos, o desejo, o amor, assuntos de cama e coração pois era viúva e respeitável. Viva porém, capaz de sentir a luz do sol e a doce aragem, capaz de riso e de alegria, conformada.
FLOR
E SEUS
DOIS
MARIDOS
EPISÓDIO Nº 114
Ao completar-se um mês sobre a morte de Vadinho, após assistir à missa, dona Flor dirigiu-se ao Mercadinho das Flores, no Cabeça. Pela segunda vez saía de casa desde aquele singular domingo, quando a morte golpeou, no Carnaval. A primeira, fora para a missa do sétimo dia.
Veio andando da igreja por entre a curiosidade do povo. Do balcão do bar, Mendez a cumprimentou, e seu Moreira, o português do restaurante, com um berro, advertiu a mulher, ocupada na cozinha: “depressa, Maria, vem ver a viúva”. Na rua, três ou quatro homens, entre os quais o janota argentino, seu Bernabó, tiraram-lhe o chapéu.
Na esquina do açougue, a negra Vitorina se pôs de pé, atrás de seu tabuleiro de abarás e acarajés: “Salve, minha iaiá, atôtô, atôtô!” Na porta da Drogaria Científica, doutor Teodoro Madureira, o farmacêutico, inclinou-se em grave reverência, na exacta medida do pesar e da aflição. O professor Epaminondas Sousa Pinto, afobado e aéreo como sempre, livros e cadernos sob o suor do sovaco, estendeu-lhe a mão:
- Minha cara senhora… A vida… O inevitável…
Os bêbados do botequim, no aperitivo matinal, os fregueses do armazém, o fazendeiro Moysés Alves a escolher especiarias para seus insignes almoços, saíram a vê-la, inclinavam-se em silêncio. O santeiro Alfredo, amigo do tio Thales, estabelecido ali perto com sua porta de imagens, abandonando a madeira onde esculpia, colocou-se à sua disposição:
- Bom dia, Flor. Posso lhe ser útil?
Acorreram os vendedores com a mercadoria. Ela comprou rosas e cravos, palmas e violetas, dálias e saudades.
Um negro alto e magro, perfil agudo, face enigmática, ainda relativamente jovem, ouvido com atenção e respeito por mecânicos e choferes do ponto de táxis, ao saber a identidade de dona Flor e o motivo dessa compra de flores, dela se aproximou a lhe solicitar algumas de empréstimo e por um momento apenas.
Um pouco surpresa, dona Flor, o satisfez, estendendo-lhe o colorido ramalhete onde ele próprio escolheu, num cuidado ritual, três cravos amarelos e quatro saudades roxas; quem seria esse homem e porque tomava dessas poucas flores?
Do bolso do paletó extraiu um fio trançado de palha da costa, um mokan, com ele amarrando cravos e saudades num pequeno buquê e dando um nó.
- Desamarre quando arriar na cova de Vadinho. É para o egun dele se aquietar – e disse em nagô, diminuindo a voz: - Aku abó!
Eis que o negro era o babalaô Didi, zelador da casa de Ossain, mago de Ifá; e só passado muito tempo dona Flor aprenderia seu nome e seus poderes, sua fama de adivinho, seu posto de Korikoe Ulukótum no terreiro dos eguns, na Amoreira.
Vestia-se dona Flor toda em negro, da cabeça aos pés, luto fechado pois apenas um mês decorrera após a morte do esposo. Mas o pequeno véu sobre os retintos cabelos quase azuis não lhe cobria o rosto e aquela expressão de angústia suicida já não lhe marcava a face. Triste ainda mas não desesperada nem vazia.
Cercada pela leveza do ar nessa manhã transparente, tão formosa de luz e tão à medida do homem que era um privilégio vivê-la, dona Flor, levantando a vista do chão, voltou a olhar e a ver o espectáculo da rua e a cor do dia.
Por entre cabeças se descobrindo ou se inclinando, a recolher gestos e palavras de conforto e simpatia, em meio ao meio do bulício da cidade, gente a passar, a conversar, a rir, dona Flor caminhou com seu buquê de Flores destinada à campa de Vadinho. Ia em direcção ao cemitério mas era de novo na vida que penetrava; ei-la de retorno, convalescente ainda.
Não a mesma dona Flor de antes, com certeza; enterrara algumas emoções e certos sentimentos, o desejo, o amor, assuntos de cama e coração pois era viúva e respeitável. Viva porém, capaz de sentir a luz do sol e a doce aragem, capaz de riso e de alegria, conformada.
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