terça-feira, maio 11, 2010

DONA FLOR
E SEUS DOIS
MARIDOS


EPISÓDIO Nº 116


Ali, na capital, vivia em desconforto, casa pequena sem quarto só para ela, dormindo em cama de vento, na sala onde dona Flor leccionava as aulas teóricas, sem armário próprio para os seus teréns, enquanto tão ampla casa do filho, com sobras de cómodos. Em Nazareth, ao demais e sobretudo, ela, dona Rozilda, era alguém. Não se impunha apenas como mãe de seu Heitor – funcionário de categoria da Estrada de Ferro, segundo secretário do social Farinhense, um dos melhores tabuleiros de gamão e dama da cidade (eclodindo nele a frustrada vocação de seu Gil, um zarro no desenho; copiava a fisionomia de qualquer vivente e reproduzia a lápis cromos de folhinha – era ela própria ornamento e evidência da melhor sociedade nazarena, onde exercia suas relações metropolitanas, a família Marinho Falcão, dr. Zitelmann Oliva e dona Lígia, o jornalista Nacife, dona Maga, o industrial Nilson Costa e sua chácara de Matatu, e antes de tudo seu compadre doutor Luís Henrique, o “cabecinha de ouro”, orgulho da terra.

Na capital, nem mesmo no mundo daquela pequena burguesia apenas remediada, circunscrito a umas poucas ruas entre o Largo Dois de Julho e santa Tereza, nem mesmo ali lhe davam atenção e importância; ao contrário, haviam-lhe tomado birra. As amigas mais íntimas de sua filha, dona norma, dona Gisa, dona Emina, dona Amélia Ruas, dona Jacy, não tiveram pejo em responsabilizá-la pelo estado desalentador da viúva, pondo a culpa em seus maus bofes, nas recriminações e nos insultos, na absurda quezília com o morto. Ou bem mudasse de atitude, largando o falatório e as maldições à memória do genro, ou fosse embora. Um ultimato.

Por isso mesmo, em reacção a tão inominável acinte, dona Rozilda prolongou a visita apesar do desconforto da casa e das restrições da vizinhança. (Dona Jacy até já arranjara ama para dona flor: uma encardida Sofia, sua afilhada.) Apressou-se a viajar, no entanto, após a missa de mês, ao ter notícias, através do compadre doutor de sua designação pelo reverendo Walfrido Moraes para o alto cargo de tesoureira da Companhia em Benefício das Novas Obras da Catedral de Nazareth, em cujo Conselho Director esplendiam a esposa do Juiz de Direito (presidenta), do Prefeito (Primeira Vice), do delegado (Segunda) e outras eminências sociais da terra.

Há muito almejava dona Rozilda pertencer ao rol das directoras, mesmo como última vogal da lista; de repente saía tesoureira, nada menos. O divino Espírito Santo iluminara o padre Walfrido, antes tão reticente às suas investidas.

Ao sacerdote custara vacilações e dúvidas tal despacho, mas o influente conterrâneo, a quem recorrera para obter o pagamento de substanciais verbas estaduais, condicionou sua decisiva ajuda à posse de dona Rozilda num cargo de inveja na pia congregação das beatas. Chantagem miserável, pensou o vigário, curvando-se a ela, no entanto, pois tinha urgência da bolada e, sem a intervenção do doutor Luís Henrique, como apressar a máquina burocrática?

Nas antevésperas, dona Gisela, com quem por vezes o doutor discutia sobre os destinos do mundo e as imperfeições do ser humano, informara-lhe:

- Se dona Rozilda não for embora, a pobre Flor não terá descanso nem para esquecer… E ela precisa esquecer, está complexada, é um curioso caso de morbidez, caro doutor, que só a psicanálise pode explicar. Aliás, Freud cita um exemplo…

Dona Norma, que com ela viera, interrompia em tempo:

- É uma caridade que o senhor faz, doutor… Bote essa peste longe daqui,
mande para Nazareth,
que ninguém aguenta mais…

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