sexta-feira, junho 11, 2010


DONA
FLOR
E SEUS
DOIS
MARIDOS


EPISÒDIO Nº 143


O Príncipe sabia aceitar uma derrota, não era de perder a cabeça e de, cretino, persistir correndo o risco de cadeia ou surra. Urucubaca dos demónios: fora logo meter-se com a comadre de mestre Mirandão, feliz ainda de escafeder-se com a pele inteira, incólume. Era sincero ao afirmar sua ignorância; se fosse sabedor dessa amizade, evitaria até a rua, quanto mais…

Sem sequer erguer os olhos para a casa de dona Flor, mudando a rota, embicou para o mar largo, desceu rápido a Ladeira da Preguiça. Nem chegara à cidade baixa quando divisou ao longe, indo devota para a Conceição da Praia, toda em preto e em véus, uma viúva. Acelerou o passo, no rumo de novo porto à vista, sorriso lânguido, súplice olhar, o Príncipe de Tal em seu ofício trabalhoso.

Na esteira do Príncipe, nunca mais visto por aquelas bandas, foram-se os comentários, os cochichos, as risotas, os candidatos da vidência e do mexerico, a folia e a troça em torno de novas bodas de dona Flor. Se antes ela zombara de tudo aquilo, em alegre burla, recusava-se agora a qualquer conversa sobre o assunto, não escondendo seu desgosto e desprazer ao ouvir a mais ligeira referência a viuvez e casamento, tomando-a por insulto e grosseria.

Como se as amigas e comadres houvessem firmado tácito protocolo, durante certo tempo não se tocou nessa matéria, parecendo todos de acordo com a viúva em seu terminante veto ao noivo e ao matrimónio. Quando alguma velhota mais xereta sentia cócegas na língua, no desejo de debater o grande tema, a lembrança do Príncipe ao pé do poste lhe punha na boca um cadeado: como se o vigarista ali permanecesse a rir da rua inteira. Sem falar na violenta proibição imposta por dona Norma, presidenta vitalícia do bairro, governo em geral liberal e democrata, mas, quando necessário, ditadura sem entranhas.

As semanas seguintes àquele confuso aniversário foram talvez as mais movimentadas da sua existência: dona Flor não teve um segundo de descanso. Sucediam-se os convites, todos querendo encher seu tempo, ser gentil com ela. Enfiou sessões de cinema uma atrás da outra, fez visita a meio mundo, correu o comércio, em compras com as amigas. Findo o horário das aulas vespertinas, ela mesmo buscava compromisso:

- Norminha, minha negra, para onde se toca assim tão chique? Por que vai saindo de mansinho sem dizer nada?

- Um enterrinho inesperado, minha santa. Chegou o aviso agorinha mesmo, com um atraso medonho: seu Lucas de Almeida, um conhecido, vem a ser ainda parente de Sampaio, bateu as botas, faleceu do coração. Sampaio não vai mesmo, você sabe, é uma vergonha. Não lhe chamei porque você não conhecia o falecido. Mas se quiser, vale a pena ir… Vai
ser um enterro e tanto,
dos bons…

Site Meter