sexta-feira, junho 18, 2010


DONA
FLOR
E SEUS
DOIS
MARIDOS


Episódio Nº 149



Nenhum resultado, seu doutor Teodoro. Dormiu de uma estirada a noite inteira, é bem verdade, só acordando quando a ama em susto lhe bateu à porta, na hora quase de começar a aula do turno matutino. Um longo sono, sim, mas igual aos outros, a mesma obsessão, o sensual delírio, a nocturna febre, a orgia desmedida; pior do que os outros, pois não conseguiu interrompê-lo e acordar, nele se crucificando a noite inteira, nesse sonhar sem fim, seu ventre em fome e sede, ferida dolorosa, chaga exposta – pela manhã, dona Flor caindo aos bocados de cansaço. Com pílulas ou sem pílulas, o sono lhe acendia as fogueiras do desejo. Obsedada, obcecada.

Obcecada, dona Flor a debater-se em danação. Durante o dia, com o tempo cheio, era cega e surda ao apelo do sexo solto na cidade: aos ditos, aos olhares pesados de convite, às frases de galanteria ou de indecência, ao cúpido desejo do macho a despi-la com o olhar e a comê-la num suspiro no cruzar da rua. Viúva honesta, exemplo das viúvas, em seu trabalho, em seu passeio, em seu recato. Durante a noite recolhia pelo chão e pelo lixo a voz dos homens, o olhar de posse, o suspiro cínico, o indecoroso ciciar, o assobio de chacota, o torpe palavrão, o convite para a cama. Quando não era ela a convidar, a se oferecer despudorada aos machos, vagando na zona das mulheres-damas, a mais dama e puta, a mais barata e fácil. Sujo poço de excrementos. Nenhum macho, porém, a alcançou e a teve. Quando em vias de obtê-la, já na fímbria de seu ventre em brasa, então o repelia dona Flor, de súbito acordando em ânsia e desespero. Viúva decente e recatada em sua noite de angústia e solitude.

Ninguém se dava conta de sua consumição maldita. Todos julgavam calma a sua vida, sem problemas, cheia de interesse, mesmo alegre. Antes muito sofrera do marido, um mau sujeito, um jogador. Agora uma viúva conforme em seu estado, contente em sua vida, com a maior indiferença por novo matrimónio, com o maior desprezo pelos homens. Tão tranquila a ponto de causar admiração e comentário. Quando despontava no Cabeça, altiva e séria, no bar os homens discutiam a seu respeito:

- Viúva direita aquela ali. Sendo bonita e moça, nunca levantou a vista para homem…

- Honesta até demais. Talvez nem seja por virtude…

- Então por quê?

- Honesta por natureza, por ser de natureza fria. Fria como o gelo, imune ao desejo. Há mulheres assim, belas estátuas, para elas o desejo não existe. Não há virtude em sua castidade e, sim, frieza. São icebergs. Ela é uma dessas, certamente.

- Será ou não, quem sabe? De qualquer maneira, por virtude ou pelo que seja, é a viúva mais direita da cidade…

O outro persistia, céptico e declamatório, subliterato atroz:

- Fria como iceberg, pode ter certeza. Marmórea, álgida, glacial.

Dona Flor em prudente passo, vestida com elegância e descrição, simples e modesta formosura, sem desviar os olhos para os lados, correspondendo ao alegre aceno do santeiro Alfredo, ao sonoro boa-tarde de Mendez, o espanhol, ao respeitoso saudar do farmacêutico, ao riso acolhedor da negra Vitorina com seu tabuleiro de abarás e acarajás. Custava-lhe esforço aquela decência tranquila, aquela face calma – nervosa, no cansaço da noite mal dormida, da luta inglória contra o
desejo
em brasa de seu ventre. Por fora agua parada, por dentro uma fogueira acesa.

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