terça-feira, julho 20, 2010

DONA FLOR
E SEUS DOIS
AMORES

Episódio Nº 176


Se o primeiro casamento de dona Flor realizou-se às carreiras, em acanhada e restrita cerimónia, no segundo tudo aconteceu como devido, reinando ordem e certo brilho. O primeiro não teve noivado, indo directo do namoro (impúdico) ao matrimónio, passando antes pela cama (antes da hora). Celebrou-se naquelas desagradáveis condições de urgência e embaraço resultantes da necessidade de tapar com o aval do Estado e da Igreja os três vinténs da moça comidos pelo namorado, antecipadamente, restaurando-se assim, senão o cabaço, pelo menos o bom nome da família.

O segundo foi puxado a convite impresso, com notícia na coluna Sociais de A Tarde, elogiosa referência ao doutor Teodoro – “nosso prezado e conspícuo assinante” – música, flores e luzes, e gente, muita gente na Igreja de São Bento, onde o celebrante, dom Jerónimo, sapecou sermão dos mais eloquentes, enquanto na cerimónia civil, o juiz, doutor Pinho Pedreira, com aquela sua elegância de conceitos, em breve e amável oração, previu uma vida de paz e entendimento para o novel casal, sob “o signo da música, voz dos deuses”. Era o descarnado e preclaro juiz colega do noivo na orquestra de amadores reunida sob a batuta do maestro Agenor Gomes, onde o magistrado se distinguia no clarinete.

Teve assim o segundo casamento de dona Flor quanto faltou ao primeiro; regido, a rogo dos noivos, por dona Norma, com proficiência e escrúpulo, viu-se cada coisa em seu lugar, na devida hora, tudo de boa qualidade e por preço acessível, tendo ele contado para sucesso com a ajuda entusiasta da vizinhança em peso.

O que não obteria dona Norma? Obteve inclusivé a presença de dona Rozilda, sua completa reconciliação com a filha. Vieram também de Nazareth o irmão e cunhada de dona Flor; ausentes apenas Rosália e António Morais, mantendo o mecânico sua decisão de só voltar à Bahia quando a sogra “houvesse tomado férias permanentes no inferno”.

Dessa vez dona Rozilda não tivera críticas a fazer: casamento a seu gosto, tanto as cerimónias como o genro. Afinal um genro seu se aproximava do modelo sonhado nos distantes idos da Ladeira do Alvo: não exactamente, é claro, não o príncipe perfeito, ideal quase alcançado com o estudante Pedro Borges. Mas, enfim, um doutor, de recursos, sócio de farmácia bem sortida e situada. Homem probo e de trato, alguém na vida, não é um pé-rapado a ganhar o pão rastejando sob os automóveis dos outros, imundo de graxa, como o marido de Rosália; muito menos um reles vagabundo, um capadócio como o primeiro esposo de Florípedes. Esse doutor Teodoro ela podia exibi-lo sem constrangimento às suas relações de elite, figura de prol, genro de substância, apatacado.

No segundo casamento só não houve namoro, e com razão, pois não fica bem a uma viúva namorar, numa esquina ou no esconso de uma porta em deboche e agarramentos: beijinhos, abracinhos, pega aqui, pega acolá, mão nos peitos, correndo pelas coxas. Descarações e sem-vergonhices toleráveis em namoro de donzela se são sérias as intenções do namorado, dando-lhe direito a algum avanço; mas insuportáveis e desmoralizantes em se tratando de viúva.

Eis por que, quando da declaração do doutor Teodoro, através da nobre epístola, ficou resolvido entre as partes – com o conselho e aprovação de parentes e amigos – um respeitoso e parco noivado, durante o qual poderiam dona Flor e doutor Teodoro melhor se conhecerem e assim
pesarem qualidades e defeitos, determinando se realmente cabia casamento.

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