segunda-feira, julho 05, 2010


DONA
FLOR
E SEUS
DOIS
MARIDOS


EPISÓDIO Nº 163



Quando o Afoxê dos Filhos do Mar, em toda a grandeza de sua comparsaria, parou em frente à Escola de Culinária Sabor e arte, obedecendo ao apito de Camafeu, e a negra Andreza de Oxum, empunhando o estandarte da rainha das águas, dançou um passo deslumbrante – as janelas cheias, a rua entupida, as palmas entusiásticas – dona Flor desmamou-se em pranto e toda a dor e toda a ausência caíram de vez sobre dela. Há um ano, com o corpo do finado estendido no leito de ferro, ainda tivera ânimo de espiar a passagem do Afoxê por sobre os ombros de dona Norma e dona Gisa, vida e morte dentro de seu peito. De tão recente e brusca, a morte ainda continha um laivo de vida.

Somente com o decorrer do tempo dona Flor se daria conta do vazio definitivo, da definitiva ausência. No Carnaval anterior, com o morto presente, pudera expiar o Afoxê, de relance ao menos. No entanto, nesse outro Carnaval, foi-lhe insuportável a gloriosa visão dos do Filhos do Mar na cadência dos atabaques. Mesmo ignorando a homenagem contida naquele apito, naquela interrupção da caminhada, naquela dança, nos requebros de Andreza qual um barco sobre as ondas, homenagem do Afoxê ao sempre recordado sócio e amigo há um ano falecido, mesmo assim dona Flor não pôde conter-se na janela; via somente o corpo nu e exangue, morto para sempre.

Difícil aquele Carnaval, cada vez mais difícil sua vida. O defunto aproveitou a ruidosa alegria para misturar-se à angústia do desejo insatisfeito, cresceu o sofrimento, tanto e tamanho que dona Flor não pôde mais suportá-lo em silêncio e solidão. Não lhe foi possível conter por mais tempo o seu segredo, o peito roto, a cabeça zonza e o cansaço. Um destroço, dona Flor. Abriu-se com dona Norma.

Dona Norma lhe garantiu noivado e casamento em prazo rápido, se a tanto se dispusesse, sem máscara nem tabuleta. Procuraram confirmação em dona Gisa, mas a gringa pouco importância dava a noivado e casamento, ridículas exigências legais e anti-humanas; andara lendo o Príncipe Kropotkin e dera em misturar anarquismo com psicanálise. Com matrimónio ou sem matrimónio, na opinião da professora de inglês, tinha dona Flor um “complexo de culpa” a torturá-la, do qual só se libertaria quando, rompendo com os tabus, se “realizasse de qualquer maneira”. Conselho mais maluco: um conúbio em amor livre, amigação, uma aventura enfim, porém imediata. Só se dona Flor fosse louca de hospício ou a mais cínica e fogueteira de todas as viúvas.

Dona Norma, sim, era de ajuda e de consolação; deixasse dona Flor confundir recato com ódio ao mundo, honestidade com carrancismo e dona Norma era capaz de apostar dinheiro como em menos de seis meses teriam a viúva de aliança ao dedo, pelo menos noiva.

Dona Gisa não apostou: por que havia dona Flor de esperar seis meses a curtir horrores? Para que toda essa tolice com tanto homem solto pelo mundo? Também, se apostasse perderia; quase sempre entre o saber do livro e o saber da vida quem acerta é a vida.

Fosse por ter dona Flor se humanizado, levando mais além da seca urbanidade das suas relações de cortesia, volvendo a sorrir e a conversar com um e outro, discreta sempre porém gentil e atenta ou fosse por simples casualidade (como era mais provável), já um mês depois dessa conversa com dona Norma e da discussão com dona Gisa, tornaram-se evidentes, e fizeram-se objecto de público debate, o probo interesse e as honestas intenções do doutor Teodoro Madureira, sócio da Drogaria Científica, nas esquina do Cabeça. Vibrante e vitoriosa, dona Dinorá exigia alvíssaras:

- Adivinhei há muitos meses, vi na bola de cristal e disse a todo o mundo: um senhor distinto, homem de bem, doutor e com dinheiro. Não foi verdade? Minhas alvíssaras, senhora dona Flor!

- Um partido e tanto, que sorte a dela! – o coro das amigas e comadres
num delírio de fuxicos,
em acordo unânime.

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