terça-feira, agosto 31, 2010

DONA
FLOR
E SEUS
DOIS
MARIDOS


Episódio Nº212



Doutor Venceslau Veiga, o cirurgião egrégio, após os primeiros acordes sorria contente com a vida e com a humanidade.

Toda a canseira da semana na sala de operações, a abrir peitos e barrigas, a atender enfermos, debruçado sobre a morte, numa luta de todos os instantes, cruel e vã, toda a canseira acumulada ia nos primeiros acordes, apenas vibrava o arco do violino. Doutor Pinho Pedreira rompia os elos da sua solidão, solteiro e misantropo, reencontrando em sua flauta a lembrança de um amor de adolescência, de uns olhos fulvos e fingidos. Adriano Pires, o Cavalo Pampa – panos brancos de vitiligo pintalgavam-lhe as mãos e o rosto – o milionário, o grande atacadista, o sócio de bancos, o director de empresas e indústrias, o comendador do Papa, ficava humilde ao lado do poderoso violoncelo, compensando-se ali da semana de ambições ferozes e de ferozes golpes, da labuta com os fregueses, os concorrentes, os empregados – todos eles uns ladrões! – no afã de ganhar cada vez mais, no medo de ser furtado, na agonia do tempo curto para tanta ânsia de dinheiro e de poder, e também da obrigatória convivência com dona Imaculada Taveira Pires, uma catástrofe. Ficava não só humilde mas generoso e humano, sorrindo para o paupérrimo caixeiro a seu lado, liberto um da excelentíssima dona Imaculada, o outro de siá Maricota.

Como siá Maricota, a comendadora vinha raramente aos ensaios. Não por falta de vestidos e conversa, é claro. Por falta de tempo, suas horas comprometidas com mil obrigações sendo ela a primeira em importância entre as damas de alta sociedade, e também porque achava aqueles ensaios de uma sensaboria, paulificação infinita, eterna repetição de acordes, as mesmas músicas durante meses, insuportável.

Antes assim, sem sua presença, sem a triste visão da sua carantonha angulosa, coberta de cremes, o busto de jóias e pelancas, e o infecto lornhão. Assim, era mais fácil a seu Adriano apagá-la dos olhos e da memória. A ela, às filhas e aos genros. As filhas, uns fracassos: duas pobres infelizes para quem a vida se reduzia aos vestidos e aos bailes. Os genros, uns gigolõs, cada qual mais inútil e salafrário, um esbanjando no Rio, outro pondo fora na Bahia o dinheiro de seu Adriano, seu suor, seu sangue, sua vida. De tudo isso repousava o atacadista: dos milhões acumulados, dos concorrentes em concordata e em falência, do vazio, do egoísmo, da tristeza de sua gente. Ali, ao violoncelo, repousava. Ao lado de seu Urbano, os dois iguais, como iguais eram, em sua verdade, a excelsa dona Imaculada e a esmulambenta siá Maricota, ambos acerbos tribufus.

Aos sábados, infalíveis, reuniam-se aqueles conspícuos cavalheiros, abandonando-se à música e à cerveja, monchalantes e risonhos. Cada sábado numa casa diferente e a dona da casa oferecia lauta merenda, mesa bem posta pelo meio da tarde. Vinham sempre duas ou três esposas, alguns amigos e outros tantos admiradores pois “há gosto para tudo” (como rosnou seu Zé Sampaio, ao voltar de uma dessas sabatinas à qual comparecera para atender às instâncias musicais do farmacêutico). Dona Flor, efectiva e firme nos primeiros tempos, fora acolhida com gentil cordialidade e ali brilhou mansa e afável.

No soleto mundo da música erudita – e aqui vai o adjectivo pelo que vale, dele discordava dona Gisa como mais adiante se verá – nesse ambiente impregnado de insignes sentimentos, não tinham vez e lugar desigualdades de dinheiro e origem social, ali se diluíam as diferenças de
classe e de fortuna para que se formasse a supercasta dos Filhos de Orfeu, irmãos na arte.

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