segunda-feira, agosto 30, 2010


DONA
FLOR
E SEUS
DOIS
MARIDOS


Episódio Nº 211



Aqueles grãos-senhores transformavam-se aos sábados à tarde em crianças alegres e despreocupadas, livres de compromissos e obrigações, de clientes e negócios, do dinheiro a ganhar com pressa e apetite. Punham de lado as distâncias Sociais, confraternizando o atacadista com o engenheiro da Prefeitura de magro salário, o cirurgião famoso com o modesto farmacêutico, o meritíssimo juiz ou dono dos Empórios Nortistas – oito armazéns na cidade – com o caixeiro da pequena loja.

Também as senhoras tão gradas e chiques abriam a intimidade de suas casas às esposas dos demais musicistas sem lhes medir a fortuna e a origem social, recebendo todas elas com a mesma afabilidade, inclusivé siá Maricota (por que siá e não dona? Porque ela mesmo alardeava: “eu não sou dona, sou somente siá Maricota e por muito favor”).

Aliás, siá Maricota quase nunca aparecia pois não tinha vestidos nem conversa à altura daquelas”fidalgas de merda” como explicava à vizinhança num canto de rua, nos limites da Lapinha com a Liberdade.

- Que é que vou fazer lá? Só se fala de festa, de recepções, de almoços e jantares, uma comilança que até dá agonia na gente. Fico pensando nos meninos aqui em casa sem poder encher barriga direito… Quando não falam de comida e bebida, é só conversa de descaração: que a mulher de sicrano está metida com fulano, que a outra está a Deus e ao mundo, que beltraninha foi pegada num castelo. Pelo jeito essas donas só sabem comer e rebolar na cama nunca vi…

Em sua revolta, dona Maricota (“não sou dona de nada, diga-me quando muito siá Maricota como a qualquer criada, não passo disso”), siá Maricota não media palavras, boca áspera e realista:

- Tudo no luxo, na seda, na estica… Que fiquem para lá no alto de sua merdolência, com seus cocores, que eu passo sem elas… Urbano vai, porque não pode viver sem o tal ensaio… Se fosse por mim ele não ia em casa de ricaço nenhum, tocava aqui mesmo, na venda de seu Bié, com Mané Sapo e seu Bebe e-Cospe – abria os braços num gesto de impotência – mas que posso fazer…? Ele é mesmo um pobre homem…

De tanto ela repetir o mote depreciativo, seu Urbano ficara conhecido como Pobre Homem, dela lhe viera o apodo humilhante. Quanto a Mané Sapo, era mestre na gaita, e seu Bebe-e-Cospe dono da velha sanfona: os dois aos domingos tocavam suas modas e engoliam sua cachaça na venda de seu Bié, ponto de encontro da mais elegante sociedade daqueles becos. Seu Urbano também aparecia e por várias vezes fizera-se ali aplaudir com seu violino, se bem aquele público desse clara preferência `gaita de Mané Sapo, à sanfona de Bebe-e-Cospe. Siá Maricota, nada entendendo de música, resmungava por ter de passar a ferro a roupa azul do marido única e antiga (as calças começando a puir nas nádegas), para os ensaios:

- Se não podem ensaiar sem ele, pelo menos deviam pagar a engomadeira… Essa tal de orquestra só dá despesa, não vejo o pobre homem ganhar nada com ela…

Ganhava paz de espírito, evolando-se na música a agre Maricota, com seu odor a alho, suas verrugas e seu falatório. No ensaio, aos sábados, repetindo as mesmas músicas de sempre, iniciando o estudo de uma ou outra nova melodia para o escolhido reportório, Urbano Pobre Homem repousava da mesquinhez da vida e, como ele, todos os demais senhores da orquestra, os graúdos, os homens ricos. Mantendo uns a gravidade dos modos, despindo-se outros de toda a solene compostura ao se colocarem em mangas de camisa para o ensaio, ao tomarem dos instrumentos, todos eles revelavam a mesma alegria interior, uma pura
inspiração a lhes varrer do pensamento o quotidiano mísero e mesquinho.

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