sábado, agosto 28, 2010

DONA

FLOR

E SEUS

DOIS

MARIDOS



Episódio Nº 210


Descendo a escada, de braço com o marido, dona Flor lhe diz:

- Todo o mundo lhe gabou, Teodoro. Lhe encheram de elogios. Todos gostaram e disseram que você se saiu muito bem…

Sorriu modesto:

- Bondade dos colegas… Mas talvez tivesse dito alguma coisa útil… E tu, que achaste?

Dona Flor apertou sua grande mão honrada, seu bom marido:

- Uma beleza. Não entendi muito, mas adorei. E fico toda cheia de vento quando te elogiam…

Quase lhe diz: “não te mereço, Teodoro” mas talvez ele com todo o seu grego e o seu latim, não a entendesse.


Se o mundo dos farmacêuticos fora imprevista descoberta, imagine-se o secreto e quase cabalístico universo musical da orquestra de amadores onde penetrou dona Flor pela estreita porta de fagote.

Aqueles graves e respeitáveis senhores, todos eles assentados na vida, com títulos universitários ou com magazines, empresas, escritórios – todos menos Urbano Pobre Homem melodioso violino, simples caixeiro da loja Beirute – constituíam uma espécie de comunidade fechada com características de seita religiosa. “Sublime religião da música, misticismo de sonoridades, com seus deuses, seus templos, seus fiéis e seu profeta, o inspirado compositor e maestro Agenor Gomes”, conforme reportagem de Flávio Costa, jovem jornalista fazendo seu aprendizado gratuitamente nas páginas de “O Lojista Moderno”, do generoso Nacife (nada cobrava ao foca pelos ensinamentos). A reportagem sobre os amadores ocupara toda a última página do Lojista, ao centro um cliché em três colunas da orquestra completa e em trajes de rigor nos jardins do palacete do comendador Adriano Pires, o qual, aliás, logo no dia seguinte ao da saída do periódico recebeu a simpática visita de seu director, que veio lhe falar das dificuldades inúmeras de um jornal sério como o seu. Impossível sobreviver, senão pudesse contar com a compreensão de homens como o titular do Vaticano, coração e carteira sensíveis a esses dramas da imprensa.

Exibia o pasquim com a reportagem (“garoto inteligente o redactor, um talento, mas um menino desses, comendador, nos dias de hoje, cobra uma fortuna por mês), o milionário desamarrava a bolsa, enternecido ao ver-se junto ao violoncelo, em meio aos seus irmãos de seita. Seita com suas obrigações, seus hábitos, um estrito ritual e uma alegria semanal de pássaros: o ensaio nas tardes de sábados.

Chegada dos alguidares, do gral, dos piluladores, dos tamises, dos potes de louça com óxidos e venenos, com mercúrio e iodo, seguia dona Flor por entre trinados, pizicatos, pavanas e gavotas, dolos e suavíssimos, na esteira do violoncelo e do oboé, dos violinos e do clarinete, da flauta e do trompete, da bateria e do fagote do marido, obedecendo ao piano condutor do maestro Agenor Gomes, simpatia de pessoa. Vinha de dona Sebastiana, de dona Paula, de dona Rita, da voraz Neusoca devoradora de caixeiros, para o convívio ainda mais elegante de damas da nata, as esposas daqueles lordes. Deles costumava dizer o banqueiro Celestino, quando obrigado a ouvi-los num concerto (ah!, a vida de um banqueiro… Há quem a suponha um fruir de delícias, sem imaginar as cacetações, as maçadas…):

- Cada desafinação de um maníaco desses vale milhões…


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