quarta-feira, setembro 22, 2010

DONA FLOR

E SEUS DOIS

MARIDOS


Episódio Nº 231




No dia da estreia como é natural e compreensível, dona Maria do Carmo teve um faniquito ao ver a filha em frente ao microfone e o espíquer a anunciar-lhe as qualidades, “voz canora de pássaro tropical”. Também dona Flor limpou umas lágrimas: tinha por Marilda ternura de mãe, lutara para vê-la ali e certa feita até se indispusera com doutor Teodoro por sua causa. Se a vitória de Marilda pertencia a toda a vizinhança, era principalmente de dona Flor. Para comemorá-la, trouxera os doces para a mesa oferecida em casa da moça, onde naquela noite abriram até uma garrafa de champanhe (oferta de Oswaldinho).

Além da estreia da jovem cantora, saudada com simpatia pela crítica da rádio e do público, houve ainda a viagem de dona Gisa aos Estados Unidos, de improviso dando lugar a fartos comentários. Nem sequer dona Dinorá com seu faro para adivinhar os particulares de toda a gente, nem ela imaginou jamais aquela notícia: falecera em New York um certo mister Shelby e deixara seus bens em herança a dona Gisa. Quem era esse Mister e por que legara suas riquezas à professora de inglês há tantos anos radicada no Brasil? A dona Gisa não podiam perguntar, ela embarcara da noite para o dia, sem aviso prévio e sem o protocolo das despedidas.

Surgiram os boatos mais estapafúrdios. Disseram-no marido, divorciado ou não, paixão antiga, caso de amor; múltiplas versões, honestas ou indecentes. Numa coisa acordes: dona Gisa abocanhava uma fortuna colossal, herança de milionário mas milionário americano, rico em dólares e não em mil-réis.

Ruiu toda a boataria quando o correio trouxe uma carta aérea para dona Norma, que, antes de abri-la, examinou longamente aqueles selos da estranja e a letra tão familiar de dona Gisa, forte e difícil, parecendo caligrafia de doutor.

De New York ela escrevia para anunciar a volta próxima: levara flores para o túmulo do primo (Primo, acredite quem quiser… Era marido, se não fosse outra coisa, futricavam nas esquinas e nos bares as comadres e os boas-vidas) e pusera em ordem seus assuntos. Realmente herdara – sua única parenta – mas a herança resumia-se a um automóvel usado, objectos de uso pessoal e de casa, umas poucas acções de companhias petrolíferas do Oriente Médio (convulso, as acções em perigo).

Vendera tudo e o apurado mal dava para pagar os gastos da viagem. Herança mesmo o duvidoso primo só lhe deixara Monseigneur, um basset de linhagem pura, em breve nas ruas da Bahia, pois dona Gisa já estava tratando dos papéis para trazê-lo.

E eis quanto sucedera naqueles meses, capaz de ser assunto desta crónica de dona Flor e seus dois maridos. Fora disso, eram os ensaios, as sessões da Sociedade de Farmácia, as aulas da escola, visitas a parentes e amigos, idas ao cinema, o amor às quartas e aos sábados.

Aos ensaios já não comparecia dona Flor com a mesma assiduidade do começo, sem os considerar no entanto uma seca, uma estopada como algumas das esposas de membros da orquestra cuja opinião era pública e notória. Por mais amiga do marido e solidária com suas obrigações e seus gostos, de quando em vez amolecia o corpo e gazeava o ensaio. Porque realmente só mesmo eles, apaixonados pela música, tinham condições para recolher naquela monótona repetição de melodias a paz interior e infinito prazer.

Tão pouco de presença pontual nas doutas reuniões da Sociedade de farmácia, com suas teses e debates. Para que forçar e ir? Para lutar a noite inteira contra o sono velhaco e fatal, buscando
manter-se atenta, sendo
por fim vencida na vergonha dos cochilos?

Site Meter