DONA FLOR
E SEUS DOIS
MARIDOS
MARIDOS
EPISÓDIO Nº 241
Curiosa a expressão do seu olhar… Quando a vira antes com aquele mesmo olhar perdido, como se olhasse para seu próprio coração? Seu Vivaldo busca na memória e a reconhece: era aquele mesmo olhar do velório do finado. Com idêntica expressão, distante, recebia então os pêsames como hoje os parabéns, os olhos fitando mais além do tempo, como se não existissem em seu redor nem lágrimas de luto nem risos de festejo, apenas solidão. Sua beleza, deu-se conta seu Vivaldo, vinha também de dentro dela, numa dimensão que lhe escapava.
Na sala onde as mulheres se reuniam, o tema da actual vida feliz de dona Flor mais uma vez se impôs. Várias senhoras presentes, as da orquestra e as da farmacopeia, pouco sabiam daquele desastroso primeiro casamento e do marido vil.
As vizinhas e as xeretas outra coisa não desejavam senão contar e comparar: contaram e compararam a locé de parler. Para elas não havia diversão melhor: nem as anedotas picantes que faziam os homens (e as sem vergonha como Maria Antónia) rir às gargalhadas na outra sala, nem ficar em torno a Marilda a pedir-lhe velhos sambas, velhas valsas, em hora da saudade, como dona Norma, dona Maria de Carmo, dona Amélia, e os rapazolas (todos eles por Marilda apaixonados), nada se podia comparar com o prazer do falatório. O primeiro casamento, fiquem sabendo, caríssimas amigas, fora o inferno em vida.
Essa felicidade do segundo matrimónio faz-se ainda maior e mais preciosa, tem mais valor, por comparação e por contraste com o erro do primeiro, uma provação, um desastre, uma desgraça! Quanto sofrera a pobre mártir nas mãos do monstro recoberto de vícios e ruindades, um Satanás: chegara até a lhe bater.
- Meu Deus! – dona Sebastiana, aflita, punha a mão no peito vasto.
Como sofrera! Tanto quanto pode sofrer uma dedicada esposa, em humilhação na rua da amargura, trabalhando para sustentar a casa e ainda a jogatina do devasso, sendo o jogo, como é público e notório, o pior dos vícios e o mais caro. Se agora é feliz, bem desgraçado fora!
Da copa dona Flor escuta essas memórias da sua vida, os olhos na distante bruma. Com dona Gisa no círculo de anedotas, com dona Norma na roda das serestas, ninguém abriu a boca para defendê-lo, ao falecido.
Por volta da meia-noite, despediam-se os últimos convidados. Dona Sebastiana, ainda na emoção da narrativa daquele martirológio a durar sete anos – como suportara, coitadinha? – tocou a face de dona Flor num desvelo e lhe disse:
- Ainda bem que agora mudou tudo e você tem o que merece…
Marilda, ofuscando com sua luz de estrela os jovens estudantes, partiu a cantarolar um tango canção de serenata, aquele: “noite alta, céu risonho, a quietude é quase um sonho…”, o de dona Flor, enterrado no carrego do defunto.
Doutor Teodoro, um sorriso de satisfação, foi levar à porta os convivas derradeiros, um grupo ruidoso, envolvido em discussão interminável sobre os efeitos da música no tratamento de certas enfermidades. Discordavam doutor Venceslau Veiga e doutor Sílvio Ferreira. Para não perder o finzinho do debate, o dono da casa acompanhou os amigos até ao bonde. Já não se ouvia o canto de Marilda.
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