quinta-feira, outubro 28, 2010

DONA FLOR
E SEUS DOIS

MARIDOS

Episódio Nº 255


Quando doutor Teodoro chegou para a janta, dona Flor se reintegrara por completo em sua inata decência e ainda mais fortalecera a decisão de manter-se digna do marido, preservando-lhe sem mácula o nome e o conceito, e límpida a fronte onde fulgiam ideias, fervilhavam conhecimentos. “Já mais mancharei o nome que ofereceste, nem plantarei cornos na tua testa, Teodoro: antes prefiro morrer”.

O importante era não facilitar, não dar chances, não permitir ao astuto comover seus sentidos, obtendo a cumplicidade da matéria vil e desprezível, matéria capaz – como lhe ensinara a propaganda ioga nos tempos famintos da viuvez – de atraiçoar seus impolutos sentimentos e de lhe vender a honra. Se Vadinho pretendesse continuar a vê-la, tinha de conter-se nos limites do decoro, das relações platónicas, pois outras não se podia permitir dona Flor e o marido antigo.

Não escondia dona Flor – nem tentava sequer fazê-lo – a ternura pelo ex-finado, seu primeiro e grande amor. Fora ele quem a despertara para vida, fazendo da mocinha tola da Ladeira do Alvo uma fogueira de altas labaredas, e ensinando-lhe alegria e sofrimento. Sentia por Vadinho uma ternura funda, comovida, um não-sei-quê, mistura do bom e do ruim, sentimento de análise difícil e de impossível explicação para ela própria.

Estava contente, feliz de vê-lo, ao maligno, de falar com ele e rir de seus achados, de suas maluquices; feliz até com os ais do coração novamente com ânsia, a esperá-lo na noite imensa, atenta a seus passos no silêncio da rua, insone; comendo da banda alegre e da banda podre, como antes. Mas agora não passava aquilo tudo de amorosa amizade, sem outras implicações, sem maiores compromissos, sem indecências de cama. A cama, ah!, eis o perigo! Chão de trampas, território de derrotas.

Hoje, novamente casada, feliz com o segundo esposo, só podia manter com o primeiro castas relações, como se aquela despudorada e desmedida paixão de sua mocidade se houvesse convertido, com a morte de Vadinho, em pudico embaraço de românticos namorados, despindo-se da violência da carne para ser puro espírito imaterial (o que aliás se impunha por essas e demais razões). Cama e gozo de corpo só com o segundo, com o doutor Teodoro, às quartas e aos sábados, com bis e doce afecto. Para Vadinho sobrava o tempo do sonho, tempo vazio em meio a tanta felicidade ou, quem sabe?, de tanta felicidade decorrendo.

Se Vadinho concordasse em encarar assim a situação, respeitando tal acordo, muito bem: esse platónico sentimento cheio de doçura e a presença discreta e alegre do rapaz seriam perfume e graça na vida de dona Flor, tão pautada em ordem, compensando certa monotonia sensaborona que parece fazer parte da felicidade. Mirandão, filósofo e moralista (como fartamente aqui se comprovou), proclamara certa vez em seu castiço dialecto baiano:

- A felicidade é bastante cacete, assaz maçante, em resumo: uma aporrinhação…

Não quisesse, porém, sujeitar-se Vadinho a tais limites e dona Flor não mais o veria, rompendo de vez relações e sentimentos – mesmo aquele afecto espiritual que, de tão inocente, não chegava a ser pecado ou desconsideração, ameaça à fúlgida testa de seu íntegro e respeitado esposo.

Assim, tranquila com estas reflexões, forte de ânimo e tendo chupado uma pastilha de hortelã para limpar a boca do gosto de pimenta e mel daquele beijo impúdico, dona Flor recebeu doutor Teodoro com a mesma afectuosa mansidão, o mesmo terno ósculo de todas as tardes, tomou-lhe o jaquetão e o colete e lhe trouxe a fresca veste do pijama. O doutor, para jantar, para o estudo na escrivaninha, para as notas do fagote, punha o paletó de pijama sobre a camisa e a gravata, era seu à-vontade.

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