quinta-feira, novembro 04, 2010


DONA
FLOR
E SEUS
DOIS
MARIDOS

Episódio Nº 261


Majestade e reino, pois Pelancchi Moulas era soberano do mais poderoso do mais poderoso truste da Bahia, rei do jogo e da contravenção, bancando legalmente a roleta, a lebre francesa, o bacará, o lasquinê, no Palace, no Tamariz, no Abaixadinho, nas grandes casas e nas pequenas onde seus prepostos mantinham-se atentos aos dados e baralhos, aos crupiês e chefes de sala, e lhe traziam diária e gorda féria da ronda, do vinte-e-um, do sete-e-meio. Raríssimas casas escapavam ao seu controle, uma ou outra apenas: a de Três Duques, a de Meningite, o antro do Paranaguá Ventura. Sobre todas as demais estendia as garras ávidas e aduncas (e bem tratadas por manicura exclusiva, mulatinha feita pelo velho Barreiros, pai daquele advogado Tibúrcio, um especialista: modelara trinta e sete mulatas em diferentes mães e cada qual mais de arromba e arrelia).

E o imenso império ilegal (em aparência) do jogo do bicho? Só a Pelancchi era permitido bancar sob garantia da polícia, e, se algum inconsciente se atrevesse a lhe fazer concorrência, logo aplicavam as zelosas autoridades ao infame marginal, o rigor máximo da dura “lex sed lex”.

Não havia em todo o Estado da Bahia homem de mais poder. Civil ou militar, bispo ou pai-de-santo. Pelancchi Moulas mandava e desmandava.

Administrador, governante do mais complexo e mais rico dos impérios, o jogo, à frente de um exército de subordinados, mestres-de-escola, crupiês, fiscais, banqueiros, faróis, proxenetas, espiões, secretas da polícia e guarda-costas, era o Papa uma seita com milhares de crentes submissos, fanáticos, escravos. Com suas propinas sustentava e enriquecia ilustres figuras da administração, da intelectualidade e da ordem pública, a começar pelo Chefe da Polícia, concorrendo para obras pias e financiando a construção de igrejas.

Diante dele, de que valia Governador e Perfeito, comandantes terrestres, aéreos ou submarinos, o arcebispo com sua mitra e seu anel? Não havia poder na terra capaz de amedrontar Pelancchi Moulas, velho italiano de cabelos brancos, de riso afável e olhos duros, quase cruéis, fumando um eterno cigarro em piteira de marfim, a ler Virgílio e Dante pois, além do jogo, só gostava mesmo de poesia e de mulatas.

O negro Arigof andava aperreado, urucubaca assim era demais. Montara em seu cangote há quase um mês desde quando, ao descer desprevenido as escadas de sobrado onde tinha seu quarto de solteiro, dera um chuto no embrulho com o ebó. Mandinga braba, coisa-feita posta em seu caminho para lhe atrasar a vida. Rasgara-se o papel, esparramando-se a farofa amarela, as penas pretas da galinha, as folhas rituais, duas moedas de cobre e pedaços de uma sua gravata ainda bastante nova, de tricô. A gravata deu-lhe a pista certa: vingança de Zaíra, iaba sem coração, incapaz de sofrer desaforo sem logo dar o troco.

Certa noite, Arigof, perdidas a calma e a elegância de fidalgo lhe aplicara um par de tabefes em pleno Tabaris, para ela tomar modos de gente, não mais lhe aporrinhar a paciência, Zaíra era muçurumim de nação mas praticava caboclo e Angola e tinha poderes junto aos inkices.

Feitiço dos mais fortes, bozó violento, quem preparara para Zaíra despacho tão fatal? Com certeza algum entendido na escrita, bom nas folhas e forte na maldade. Não houve esconjuro que desse jeito, o ebó prendera a sorte do negro no fundo de um poço e ele se arrastava mendigo pelas casas da jogatina, perdendo em todas elas. Já pusera no prego seus pertences melhores: o anelão de prata verdadeira, o correntão de ouro com figas de Guiné e um pequeno chifre de marfim, o relógio adquirido ao marinheiro louro de um navio, roubado talvez num camarote de milionário: tão bonito e cutuba que o espanhol do Sete, com todo o seu conhecimento de jóias, assobiara de emoção à sua vista, oferecendo-lhe mais quinhentos mil-réis se o negro se dispusesse a vendê-lo em vez de empenhá-lo.

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