quarta-feira, novembro 24, 2010

DONA

FLOR
E SEUS
DOIS
MARIDOS


Episódio Nº 277


Jogador antigo e experiente, Anacreon respeitava os sonhos, concedendo justo valor a um bom palpite, ainda mais se fornecido por amigo tão leal quanto Vadinho. No fim da tarde, ao prestar as contas, deu seu jeito, capou una trocos, o bom do Raimundo nada disse.

Depois foi o que se soube, assombro e comentário da cidade: aquela sensação ao bacará, o ponto repetido por duas noites sem descanso. Domingos Propalato perdendo a calma pela primeira vez em seu longo ofício. Máximo Sales, com ar de parvo, saindo a correr em busca de Pelancchi Moulas.

O próprio Anacreon, em toda sua gloriosa crónica de contraventor, nada vira comparável a esta sua sorte e ao azar da banca. Mas não lhe competia discutir o acontecido: palpite de Vadinho era para ser honrado e não desperdiçado em tolas discussões. Homem de amplos horizontes, Anacreon acreditava no destino e em sua boa estrela e, para ele, em se tratando de fichas e baralhos, o impossível não existia.

Quanto a Pelancchi Moulas, apenas penetrou na sala, leu o pânico nos olhos perplexos de Domingos Propalato. Vindo colocar-se ao lado do irmão-de-leite, ouviu-lhe a voz num sussurro e em desespero, era como se ouvisse a sua sentença de morte.

- Dio cane, Peccchiccio! Siamo fututi!

Simples pau-mandado da fatalidade, Propalato virou a carta, deu o ponto.



“Sono fregato, sono fututo!”, repetiu Pelancchi Moulas quando, em seguida a Anacreon, chegou a vez de Mirandão.

De todos os rapazes daquela geração, Mirandão fora o único a permanecer o mesmo jovial boémio, como se o tempo não passasse , varando as noites por entre as emoções do jogo.

Um Domingo de manhã, estando em casa a cuidar dos passarinhos nas gaiolas, Mirandão ouviu distintamente a mensagem de Vadinho: naquela noite, na roleta do Palace, o 17.

Melhor amigo não possuíra Mirandão, ele e Vadinho tinham sido como mabaças de tão inseparáveis. Também o nome de Vadinho não lhe saía da boca nem sua lembrança da memória. Como esquecê-lo, senão mais houvera amigo igual?

Naquele dia, porém, era diferente. A recordação de Vadinho adquiria uma consistência de presença, como se ali estivesse ajudando Mirandão junto às gaiolas a desatar no assobio o canto do curió e do canário.

Mirandão fora convidado pela negra Andreza para almoçar sarapatel em sua casa. Pelo caminho a voz lhe repetiu o palpite e o fez também na mesa de toalha alva onde recendiam o sarrabulho e o molho de pimenta. 17 era o número da sorte de Vadinho, jamais, porém, favorecera a Mirandão.

Naqueles três anos, em homenagem ao amigo falecido, Mirandão arriscara algumas vezes seu parco capital no 17, sempre com prejuízo. Novamente o faria, se Vadinho o desejasse, o amigo era merecedor de muito mais.

Apenas naquele Domingo não tinha capital nenhum e entre os convidados de Andreza – o carpina Waldemar, Zuca, um empregado do serviço rural com os salários em atraso, o pedreiro Rufino e mestre Pastinha – só Robato Filho talvez pudesse dispor de algum para
emprestar
.

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