terça-feira, dezembro 07, 2010

DONA
FLOR
E SEUS
DOIS

MARIDOS

Episódio Nº 287



Tarde de sábado, de melancolia e chuva. Tão difícil ficar sozinha, com sua tristeza. Nem isso conseguia dona Flor. De guarda-chuva e capa de borracha, lá se fora doutor Teodoro com o fagote para o ensaio em casa do doutor Venceslau. Dona Flor se desculpara: com enxaqueca e sem graça para conversar sobre figurinos e recepções, sobre a vida alheia. Tão pouco se dispunha à monotonia do ensaio. Isso não lhe disse, é claro; ao contrário, lastimou não ouvir, mais uma vez, a composição do maestro Agenor Gomes, tão de seu agrado, lânguida valsa em homenagem a dona Gisa, de quem o músico se fizera amigo: “Suspiros ao luar do Mississipi.

Dona Gisa, aliás, há pouco viera convidar dona Flor para uma demonstração de capoeira, nuns terrenos baldios para as bandas de Amaralina: gringa sapeca, sempre com novidades. Como ir, se nem ao ensaio fora, o corpo mole, o ânimo desfeito? O mesmo respondera ao doutor Ives e a dona Êmina, fiéis da matiné aos sábados e quase sempre no mesmo cinema. Também dona Norma a quisera levar:

- Venha peruar a bisca, o jogo não impede que se converse.

- Obrigada, Norminha. Se eu estivesse com disposição, teria acompanhado Teodoro. Deixei ele ir sozinho…

Dona Norma concordava:

- Vi quando ele passou para o bonde. Ia desolado, com uma cara de enterro. Esse teu marido te adora, Flor.

Uma injustiça não tê-lo acompanhado ao ensaio: o marido lhe pedia tão pouco em troca de tanto amor e devoção. Enquanto o outro… Nem queria pensar no coisa-ruim, no maligno. Por que o coração da gente é assim, contraditório? Por que ela deseja, afinal, permanecer sozinha? A maior alegria do doutor Teodoro era tocar seu fagote nos ensaios, com dona Flor presente, a ouvi-lo e a animá-lo. E ela se deixara ficar, para que, senão na esperança do outro vir, mesmo de fugida, de sua eterna noite de jogo?

Talvez, sim, mas para lhe dizer toda a verdade, para mandá-lo embora, para romper toda e qualquer relação. Seria mesmo assim? Para lhe dizer esta verdade, ou a outra: “Toma de mim, Vadinho, toma-me toda, já não posso esperar”. Qual das duas verdades lhe diria? Ai, nessa batalha do espírito com a matéria, ela é apenas um pobre ser em desespero.

Da casa ao lado chega a voz de Marilda, num canto de amor. Quase noiva e estudante de pedagogia, a jovem estrela da radiodifusão, não tendo sido feito ainda o pedido oficial porque o pretendente, rico de cacau e de preconceitos, exige que ela abandone o rádio. Cantar, só para ele e para mais ninguém. Muito custara a Marilda ver-se ante os microfones, cobrindo a cidade com sua pequena voz melodiosa. Porque pagar tão alto preço ao noivo? Confiante, vinha pedir conselho a dona Flor. Mas dona Flor já não sabia aconselhar ninguém, nem a si própria, perdida em confusão. Não era mais uma pessoa só e igual, inteira e íntegra: estava dividida em duas, a honesta e a salafrária, seu recto espírito, do outro a matéria em ânsia. Um desacordo.

Doutor Teodósio partira sob a chuva, o fagote defendido pela capa, para ele só existem duas coisas sagradas nesse mundo: dona Flor e a música. Pela esposa e pelo canto do fagote, se preciso fosse, sacrificaria farmácia e benefícios, teses de ciência e seu conceito na sociedade. Homem direito, exemplo dos maridos.

O outro era um capadócio, um vagabundo, não passava disso. Disposto a desonrá-la pela segunda vez, no entanto não sacrifica nada para obtê-la, sequer um minuto de seu tempo estroina.

Site Meter