quinta-feira, fevereiro 03, 2011

TERESA

BATISTA


CANSADA


DE


GUERRA

Episódio Nº 21



Na véspera, na Ponte do Imperador, ele lhe tocara o lábio com os dedos, constatando não mais restar marca da soqueira – apenas o dente ainda não fora posto. Januário não passara desse leve toque dos dedos, todavia suficiente para abri-la inteira.

Em vez de comprovar a saúde do lábio ferido num exame mais profundo, de beijos, ele retirara a mão como se a houvesse queimado ao contacto com a boca húmida de Tereza. Trouxera uma revista carioca onde, em reportagem a cores sobre a Bahia, numa fotografia de duas páginas, via-se a Rampa do Mercado e nela ancorado, bem de frente, chegando de viagem, o Flor das Águas com a vela azul desatada e de pé ao leme, troco nu, remendado calção, o mestre de saveiro Januário Gereba, para Tereza, Janu: quem me quer bem me chama Janu.

Tereza desce pela Rua da Frente, buscando o vulto do gigante a gingar em seu andar marinheiro, a brasa do cachimbo de barro iluminando o caminho. Atracada à carunchosa ponte de madeira, não longe do Vaticano enxerga a sombra da barcaça Ventania, as luzes apagadas, nenhum movimento a bordo; se alguém lá está, dorme na certa e Tereza não se atreve a chegar perto.

Cadê mestre Gereba, onde se escondeu o gigante do mar, para onde alçou voo o urubu-rei, o grande voador?

No primeiro andar do Vaticano, as lâmpadas de luzes coloridas, vermelhas, verdes, amarelas, roxas, azuis, convidam a juventude doirada de Aracaju e os adventícios para a sala do baile do Paris Alegre. Quem sabe, Januário domina a pista de dança, bela dama nos braços, qualquer vagabunda do porto, dançar era seu fraco, atrás de dança subira as escadas do cabaré na noite do arranca-rabo. Quem dera a Tereza poder transpor a porta, galgar os degraus, varar sala dentro e, imitando Libório das Neves, dirigir-se à pista, postando-se indignada, as mãos na cintura em desafio e escárnio, diante de Janu a apertar contra o peito par constante: então é assim que o senhor me foi buscar em casa como prometeu?

Flori proibira-lhe ir à noite ao cabaré, querendo o empresário guardar inalterada para a estreia a imagem de Tereza quando do cu-de-boi, imagem vista e comentada; se ela começa a aparecer à noite a dançar, a conversar com um e com outro, já nenhum habitue pensará nela erguida em fúria a cuspir na cara de Libório, a desafiar meio mundo, em pé de guerra. Só voltarão a vê-la na grande noite de apresentação da Rainha do Samba, de saiote, bata e turbante. Além do lábio inchado e da falta do dente.

Por falar em dente, Flori se pergunta, safado da vida, quando terminará o doutor Jamil Najar a sua obra-prima, nunca um cirurgião-dentista-e-protético demorou tanto tempo para colocar um dente de ouro. Calisto Grosso mulato tirado a gostosão, um prensa, líder da estiva de Aracaju, tarado por dente de ouro, conta sete na boca, quatro em cima, três em baixo, um bem no alto e no centro, o mais bonito dos sete, quase todos ali postos num piscar de olhos, pelo doutor Najar. Numa só ocasião botou três, três dentes enormes, no entanto não requereu nem metade do tempo já gasto em colocar um único pequeno dente de ouro na boca de Tereza Batista.

Não só por proibida e por banguela, mas sobretudo por não lhe caber direito, nenhum direito, o mais mínimo, de tirar satisfação ao mestre saveiro, estivesse ele dançando, namorando, fretando, bolinando, rolando na cama, embolado com uma quenga qualquer. Até àquele dia nem de namorada podia reclamar-se: apenas fugidios olhares – ele desviava a mirada quando Tereza o
pegava em flagrante, a comê-la com a vista.

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