sexta-feira, março 04, 2011

TEREZA

BATISTA
CANSADA
DE
GUERRA


Episódio Nº 46


Justiniano Duarte da Rosa tirou do bolso o maço de dinheiro, foi contando cédula por cédula, devagar, a contragosto. Não lhe apraz desprender-se do dinheiro, sente uma dor quase física quando não lhe resta outra saída senão pagar, dar ou devolver.

- É só por consideração a vosmicê que, como disse, criou a moleca, deu de comer e educação. Se estou lhe dando esse adjutório, é porque quero. Porque se eu quisesse levar de qualquer jeito, quem ia impedir? Um olhar de desprezo para o lado de Rosalvo, molhava o dedo na língua para melhor separar as cédulas.

Os olhos baços de Rosalvo fixos no chão, sentindo o passar das notas, na raiva, no medo, na impotência. Daquele dinheiro arrancado com tanta habilidade pela coisa ruim, ele não veria nem a cor, a não ser se conseguisse roubá-lo, tarefa arriscada.

Ah! porque esperara tanto se o plano de há muito se completara em sua cabeça, detalhe por detalhe? Simples, fácil e rápido. O mais trabalhoso era cavar o buraco onde enterrar o cadáver, mas Rosalvo contava que, chegada a hora, Tereza o ajudasse.

Quem mais se beneficiaria com a morte de Filipa senão ela. Tereza, livre da tirania doméstica, promovida a mulher de Rosalvo, dona da casa e do roçado, das galinhas e do porco?

Durante meses e meses arquitectara, desenvolvera aquele projecto, vendo a sobrinha crescer, dia a dia se fazendo moça. Percebeu o despontar das sementes dos seios, acompanhou o nascer dos primeiros pelos no ventre dourado.

Quando Filipa dormia a sono bruto de quem dobrou o dia no trabalho, à luz incerta da barra da manhã ele contemplava Tereza no catre de varas, no chão os trapos sujos, largada, quem sabe a sonhar. Estremecia à vista do corpo nu, formas ainda indecisas, mas já vigorosas e belas. Nem precisava tocá-la, nem tocar-se; só de vê-la o prazer subia-lhe pelo peito, penetrava-lhe a carne, inundava-o.

Imagine-se o dia próximo quando ela se fizesse mulher e apta. Nesse dia de festa, Rosalvo iria em busca do necessário no esconderijo da mata e à noite faria o trabalho. Enxada é utensílio de variada serventia, suficiente para acabar com Filipa e para cavar-lhe a sepultura, cova rasa; sem cruz nem aqui jaz, tanto ela não merecera, a desgraçada. Rosalvo roubara a ferramenta na roça de Timóteo há mais de seis meses e a escondera; há mais de seis meses decidira matar Filipa quando Tereza atingisse a puberdade.

Não imaginava sequer pudesse a desaparição de Filipa preocupar vizinhos e conhecidos, conduzir a perguntas e inquéritos. Menos ainda que Tereza protestasse, saísse em defesa da tia, se negasse a ajudá-lo e não o quisesse de homem. Tanta coisa junta não cabia no juízo de Rosalvo, bastara-lhe o roubo da enxada e da corda e a elaboração do plano: liquidar Filipa enquanto a arrenegada dormisse; com ela acordada nem pensar, o morto seria outro. No leito, deitado ao lado da mulher, Rosalvo, via a enxada esmagar-lhe o crânio e a face. Enxergava no negrume da noite o rosto desfigurado, uma posta de sangue: vá arranjar macho no Inferno, puta velha, imundície. Ao ouvir no silêncio do campo o som ronco da enxada partindo ossos e cartilagens, estremecia de prazer. Além desses projectos e dessas visões não se aventurava Rosalvo. Bastavam com sobra para encher-lhe os dias vazios, dar sabor à cachaça, esperança de vida. Vida e morte nasceriam do primeiro sangue vertido por Tereza, vida de Rosalvo, morte de Filipa.

Site Meter